Cultura

O olhar afiado de João do Rio

‘Gente às janelas’ reúne textos que mostram a trajetória do criador da crônica moderna e ajudam a entender sua leitura do Rio de Janeiro do final do século 19

A coletânea Gente às janelas: crônicas, lançada na terça-feira (16), pela Carambaia, reúne 33 textos inéditos do jornalista e escritor carioca João do Rio, homenageado da próxima edição da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, que acontecerá em outubro.
Organizado pela editora Graziella Beting, o volume traz crônicas que buscam capturar a alma de um Rio de Janeiro do final do século 19 e início do século 20 que crescia rapidamente e escancarava, aos olhos do cronista, suas contradições sociais.

Homem negro, filho de um professor de matemática e de uma dona de casa e acusado de homossexualidade — considerada uma doença em sua época — João do Rio abordava temas e particularidades de ambientes que os jornalistas da época não acessavam, como preconceito, miséria e moradia.

A maestria em misturar jornalismo — profissão que manteve a vida toda, ajudando, inclusive, a formalizar o trabalho do repórter — e literatura lhe renderam o título de criador da crônica moderna.

“Era uma nova forma de fazer jornalismo. Ao longo do tempo, ele levou seus leitores — já fiéis — aos meandros e subterrâneos da cidade, suas vielas e círculos do vício, apresentando um Rio de Janeiro sobre o qual ninguém falava. Tudo isso pontuado por uma boa dose de humor e ironia — que se tornaria uma das características da crônica, quando ela se definiu como gênero”, escreve Beting na introdução do livro.

“Outro detalhe de suas empreitadas que chamou a atenção de seus contemporâneos: ele reproduz os diálogos exatamente como as pessoas falam. Como resultado, seus leitores tiveram acesso a um texto sem o rebuscamento tradicional da imprensa da época, que refletia o português das ruas”.

Trecho de Gente às janelas: crônicas
O último burro

Era o último bonde de burros, um bondinho subitamente envelhecido. O cocheiro lerdo descansava as rédeas, o recebedor tinha um ar de final de peça e o fiscal, com intimidade, conversava.
– Então paramos?
– É a última viagem.
Estávamos numa rua triste e deserta. Viéramos do movimento alucinante de centenas de trabalhadores que, em outra, à luz de grandes focos, plantavam as calhas da tração elétrica, e víamos com uma fúria satânica, ao cabo da rua silenciosa, outras centenas de trabalhadores batendo os trilhos.
Saltei, um pouco entristecido. Olhei o burro com evidente melancolia e pareceu-me a mim que esse burro, que finalizava o último ciclo da tração muar, estava também triste e melancólico.

O burro é de todos os animais domésticos o que mais ingratidões sofre do homem. Bem se pode dizer que nós o fizemos o pária dos bichos. Como ele tivesse a complacência de ser humilde e de servir, os poetas jamais o cantaram, os fabulistas referem-se a ele com desprezo transparente, e cada um resolveu nele encontrar a comparação de uma qualidade má.
– É teimoso como um burro! Dizem, e de um sujeito estúpido: – que burro!
Cada bicho é um símbolo e o burro ficou sendo o símbolo da falta de inteligência. Mas ninguém quis ver que no burro o que parece insuficiência de pensar é candura d’alma, e ninguém tem a coragem de notar a inocência da sua dedicação.

Eu tenho uma certa simpatia por esse estranho sofredor. Há homens infinitamente mais estúpidos que o burro e que entretanto até chegam a ser ricos e a ter camarote no Lírico. Há bichos muito menos dotados de inteligência e que entretanto ganharam fama.
A raposa é espertíssima, quando no fundo é uma fúria irrefletida, o boi é filosófico, o cavalo só falta falar, quando de fato regulam com o burro, e a infinita série de inutilidades do lar desde os gatos e fraldiqueiros aos pássaros de gaiola tem a admiração pateta dos homens, quando essa admiração devia pender para o caso simples e doloroso do burro.

O burro é bom, é tão bom que a lenda o pôs no estábulo onde se pretende tenha nascido um grande sonhador a que chamam Jesus. O burro é resignado. Ele vem através da história prestando serviços sem descansar e apanhando relhadas como se fosse obrigação. Não é um, são todos. Eu conheço os burros de carroça, com o couro em sangue, suando, a puxar pesos violentos, e conheço os burros de tropa na roça, e os burros de bondes, magros e esfomeados. São fatalmente fiéis e resignados. Não lhes perguntam se comeram, se dormiram, se estão bem. Eles trabalham até rebentar, e até a sua morte é motivo de pouco caso. Para demonstrar nos conflitos, que não houve nada, sujeitos em fúria dizem para os curiosos: – Que olham? Morreu um burro!

O burro é carinhoso e familiar. Ide vê-los nas limitadas horas de descanso. Deitam-se e rebolam na poeira como na grama, e beijam-se, beijam-se castamente, sem outro motivo, chegando até por vezes a brincar.
O burro é triste. O seu zurro é o mais confrangente grito de dor dos seres vivos; o ornejar de um gargolejar de soluços. O burro é inteligente. Examinai os burros das carroças de limpeza pública às horas mortas, nas ruas desertas. Vai o varredor com a pá e a vassoura. É burro de resignação. Vai o burro a puxar a carroça. É o varredor pela inteligência. São bem dois amigos, conhecem-se, conversam, e quando o primeiro diz ao segundo:
– Chó, para!

Logo o burro para, solidários na humilde obra, comem os dous coitados. Esse exemplo é diário. A história cita o burro do sábio Ammonius em Alexandria, que, assistindo às aulas, preferia ouvir um poema a comer um molho de capim.
O burro é pacífico. Se só houvesse burros jamais teria havido guerras. E para mostrar o cúmulo da paciência desse doce animal, é preciso acentuar que quase todos gostam de ouvir música. Um abade anônimo do século VII, tratando do homem e dos animais num livro em que se provava terem os animais alma, diz que foram os animais a ensinar ao homem tudo quanto ele desenvolveu depois. O burro ensinou o labor contínuo e resignado, o labor dos pobres, dos desgraçados. Todos os bichos podem trabalhar, mas trabalham ufanos e fogosos como os cavalos ou com a glória abacial dos bois. O burro está na poeira, lá embaixo, penando e sofrendo. Por isso, quando se quer dar a medida imensa dos esforços de um coitado, diz-se:
– Trabalha como um burro!

Pobre quadrúpede doloroso! Não tem amores, não tem instintos revoltados, não tem ninguém que o ame! Quando cai exausto, para o levantar batem-lhe; quando não pode puxar é a murros no queixo que o convencem. De fato, o homem domesticou uma série de animais para ser deles servo. Esses animais são na sua maioria uns refinados parasitas, com a alma ambígua de todo parasita, tenha pelo ou tenha pele ou tenha penas. Os grandemente úteis dão muito trabalho. Só o burro não dá. E ninguém pensa nele!
Aqui, entre nós, desde o Brasil Colônia, foi ele o incomparável auxiliador da formação da cidade e depois o seu animador. O burro lembra o Rio de antes do Paraguai, o Rio do Segundo Império, o Rio do começo da República.

Historicamente, aproximou os pontos urbanos, conduzindo as primeiras viaturas públicas. Atrelaram-no à gôndola, prenderam-no ao bonde. E ele foi a alma do bonde durante mais de cinquenta anos, multiplicando-se estranhamente em todas as linhas, formando famílias, porque eram conhecidos os burros da Jardim Botânico, os lerdos burros da São Cristóvão, os magros e esfomeados burros da Carris.

O progresso veio e tirou-os fora da primeira. Mas era um progresso prudente, no tempo em que nós éramos prudentes. Vieram os alemães, vieram os assaltantes americanos, e na nuvem de poeira de tantas ruas abertas e estirpadas, carros elétricos zuniram matando gente aos magotes, matando a influência fundamental do burro. Eu via o último burro que puxara o último bond na velha disposição da viação urbana. E era para mim muito mais cheia de ideias, de recordações, de imagens,do que estar na Câmara a ouvir a retórica balofa dos deputados.
Aproximei-me então do animal amigo. Certo, o burro é desses destinados ao ouvido imediato. Entre a força elétrica e a força das quatro patas não há que escolher. Ninguém sentirá saudades das patas, com o desejo de chegar depressa.

O burro do bond não terá nem missa de sétimo dia após uma longa vida exaustiva de sacrifícios incomparáveis. Que fará ele? Dava-me vontade de perguntar-lhe, no fim daquela viagem, que era a última:
– Que farás tu?
Resta-lhe o recurso dos varais das carroças. Burro de bond além de especializado numa profissão, formava a casta superior dos burros. Sair do bond para o varal é decadência. Também as carroças são substituídas por automóveis rápidos que suportam muito mais peso. E ninguém fala dos monoplanos. Dentro de alguns anos monoplano e automóvel tornarão lendárias as tropas com a poesia das madrinhas… Como as espécies desaparecem quando lhes falha o meio e não as cuidam os homens, talvez o burro desapareça do mundo nas condições dos grandes sáurios.

Em breve não haverá nas cidades um nem para amostra. As crianças conhecê-lo-ão de estampas. Em três ou quatros séculos ver um burro vivo será mais difícil do que ir a Marte.
Oh! a tremenda, a colossal ingratidão do egoísmo humano! Nós outros só damos importância ao que alardeia o serviço que nos presta e aos parasitas. O burro na civilização é como um desses escravos velhos e roídos, que não cessou um segundo de trabalhar sem queixumes. Vem o aparelho novo. Empurram-no.
– Sai-te, toleirão!

E ninguém mais lembra os serviços passados. Eu mesmo seria incapaz de pensar num burro tendo um elétrico, apesar de considerar o doce e resignado animal o maior símbolo de uma paciente aglomeração existente em toda parte a que chamam povo – povo batido de cocheiros, explorado por moços de cavalariça, a conduzir malandros e idiotas, carregado de cargas e de impostos.
Naquele momento desejava saber o que pensava o burro. Mas decerto ele talvez não soubesse que era o último burro que pela última vez puxava o último bondinho do Rio, finalizando ali a ação geral do burro na viação e na civilização urbanas. Tudo quanto pensara era de fato literatura mórbida, porque nem os burros por ela se interessariam, nem os homens teriam a gratidão de pensar no animal amigo, mandando fazer-lhe um monumento ao menos.

O homem nem sabia, pois o caso não fora anunciado. Aquele burro representativo talvez pensasse apenas na baia – que é o ideal na vida para os burros e para todas as outras espécies vivas.
Assim, sentindo por ele a angustiosa, a torturante, a despedaçante sensação da grande utilidade que se faz irrevogavelmente inútil, eu estava como a vê-lo boiar na maré cheia da velocidade, como os detritos que vão ter à praia, como os deputados que deixam de agradar às oligarquias, como os amigos dos governos que caem, como os sujeitos desempregados. Quanta coisa esse burro exprimia!

Então peguei-lhe a queixada, quis guardar-lhe a fisionomia, posto que ele teimasse em não ma deixar ver bem. Mas como, na outra rua, retinisse o anúncio de um elétrico, estuguei o passo, larguei o burro sem saudade – eu também! sem indagar ao menos para onde levariam esse animal encarregado de ato tão concludente das prerrogativas da sua espécie, sem mesmo lembrar que eu vira o último burro do último bondinho na sua última viagem urbana…

E assim é tudo na vida apressada. Publicada originalmente em A Notícia, em 5 de setembro de 1909, e incluída na coletânea Vida vertiginosa (Paris, Garnier, 1911).

Fonte: Quatro cinco um

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