Governo Lula, ONGs e partidos de esquerda se unem no STF para acabar com escolas cívico-militares
Paraná lidera implantação de colégios cívico-militares com mais de 300 escolas
Por Renan Ramalho
Quatro processos no Supremo Tribunal Federal (STF) dão uma amostra de como a esquerda se articula para defender suas posições num tema crucial: a educação básica de crianças e adolescentes. Tramitam na Corte ações, apresentadas por PT, Psol, PCdoB e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) — que reúne sindicatos de professores — que buscam derrubar leis do Paraná, São Paulo e Rio Grande do Sul que instituíram e regulamentaram a implantação das escolas cívico-militares em cada um dos estados.
Nesses processos, nada menos que 27 órgãos públicos federais, ONGs, associações e entidades, incluindo os próprios partidos, se juntaram para atacar o modelo, impulsionado no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que conquistou popularidade e apoio entre pais de estudantes, e alcançou, nos últimos anos, a maioria dos estados.
Famílias, governadores e prefeitos conservadores aderiram em massa às escolas cívico-militares por serem um raro caso de sucesso na educação brasileira e aplacarem um dos maiores problemas atuais da educação pública e diretamente responsável pelos maus resultados no aprendizado: a indisciplina e a violência no ambiente escolar, especialmente em bairros pobres e de periferia das cidades.
O resultado já é visível: o Paraná, que foi pioneiro na ampliação das escolas cívico-militares, com uma lei aprovada em 2020, manteve a liderança entre os estados no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) do ensino médio. Entre as 20 escolas com as maiores notas, incluindo públicas e particulares, cinco são colégios administrados pela Polícia Militar, duas funcionam no modelo cívico-militar e seis são instituições com gestão federal.
Apesar do êxito do modelo, no ano passado, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) decretou o fim do programa federal implantado por Bolsonaro em 2019 para apoiar a conversão de escolas comuns em cívico-militares. Em reação, 19 governadores anunciaram que iriam manter o modelo, com base em leis estaduais.
Neste ano, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), propôs e aprovou, com amplo apoio na Assembleia Legislativa, a lei que regulamenta o funcionamento das escolas cívico-militares no estado. O Rio Grande do Sul, do governador Eduardo Leite (PSDB), fez o mesmo. E o Paraná, governado por Carlos Massa Ratinho Júnior (PSD), atualizou sua lei em 2022.
As ações no STF visam derrubar todas essas leis, que se tornaram modelo no país. Se a Corte considerar o modelo inconstitucional, todos os estados terão que acabar com as escolas cívico-militares; bastaria que os partidos acionassem o tribunal para derrubar cada uma das leis estaduais.
Os partidos e ONGs de esquerda receberam apoio do governo Lula, com pareceres da Advocacia-Geral da União (AGU) e do Ministério da Educação (MEC) recheados de críticas e apontamentos de supostas inconstitucionalidades, além de manifestações também contrárias de alas progressistas das Defensorias Públicas e do Ministério Público.
Nos processos, os únicos que se manifestaram a favor das leis, até o momento, foram aqueles que as propuseram e aprovaram: Tarcísio de Freitas, Ratinho Jr., e as Assembleias Legislativas de São Paulo, do Paraná e do Rio Grande do Sul. Da sociedade civil, apenas um advogado se manifestou no STF a favor da lei paulista, rebatendo cada um dos argumentos do PT.
A discrepância na mobilização junto à Corte — 27 órgãos e entidades contra e apenas cinco a favor, além de um cidadão que se manifestou em defesa das escolas cívico-militares (veja lista no final desta reportagem) — e a relevância do tema motivou o ministro Gilmar Mendes, relator das ações contra a lei de São Paulo, a convocar uma audiência pública, para que todos os interessados possam discutir a questão oralmente antes do julgamento no plenário do STF pelos ministros. A data prevista para audiência é 22 de outubro e as inscrições para participar se encerraram em 4 de outubro.
Ao convocar a audiência, no início de setembro, o ministro afirmou que o objetivo é conhecer melhor a evolução das escolas militares e cívico-militares no Brasil; a distinção prática entre escolas militares e escolas cívico-militares; impactos financeiros e orçamentários na implementação de escolas cívico-militares; a dinâmica pedagógica das escolas convencionais, das militares e das cívico-militares; e repercussões das escolas cívico-militares na segurança.
“A coleta de dados e argumentos tecnicamente qualificados e especializados permitirá que esta Corte se debruce com maior segurança sobre os fatos que conformam a aplicação da norma que cria o programa de escola cívico-militar, à luz dos princípios da liberdade de aprendizagem, ensino e pesquisa, do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, da gestão democrática do ensino”, escreveu Gilmar Mendes.
O que dizem os que criticam as escolas cívico-militares
Os partidos, ONGs e órgãos públicos contrários às escolas cívico-militares dizem que elas promovem uma “militarização” do ambiente escolar e, com isso, agridem a liberdade dos estudantes para manifestar suas opiniões e comportamentos. Argumentam que a cultura militar, nos quais impera a hierarquia e a disciplina, mina a “gestão democrática” do ensino, e a “valorização dos profissionais da educação”, dois preceitos previstos na Constituição.
A crítica da esquerda se dá por causa do emprego de policiais aposentados nas funções de monitoria das escolas e na segurança interna. As leis estaduais não dão a eles cargos de professores, que continuam oriundos de concursos públicos realizados pelas secretarias de educação. Cabe aos monitores militares executar atividades extracurriculares — que incluem lições de “Cidadania e Civismo” — bem como a inclusão, na rotina dos estudantes, de prestar continência à Bandeira e ao Hino Nacional. Outra insatisfação se dá em relação aos uniformes, mais formais e alinhados, além da proibição de cortes de cabelo extravagantes e uso de bonés e piercing.
A educação não se torna libertadora, tampouco emancipatória, restringindo-se à proliferação do medo e da angústia. Cria jovens e adolescentes receosos de impor limites a quem lhe incomoda, subservientes a autoridades autocrática [sic], permeados de inseguranças e, por vezes, sem reconhecer a si próprio e o potencial de sua personalidade. Nas palavras de Michel Foucault, temos aí o ‘corpo dócil’”, diz a ação do PT. “Crianças e adolescentes são submetidos ao julgo [sic] da força policial dentro do ambiente escolar, como o policiamento ostensivo feito por esses policiais nas ruas, sem contar com o ambiente opressivo e tóxico”, diz outro trecho.
“A educação civil deve seguir sendo a base estrutural sobre a qual todo o edifício republicano brasileiro se erige, de modo que a alteração dessa estrutura fundamental pode fazer ruir, caso não combatida, a nossa democracia, na medida em que a militarização das escolas públicas representa verdadeira antítese institucional do espírito republicano e democrático que alicerçou a Constituição Federal de 1988”, afirmou o Psol em suas ações.
Outra contestação é de ordem financeira: os partidos e sindicatos de professores dizem que, em São Paulo, os policiais monitores podem receber de gratificação, além do salário de aposentadoria, até R$ 6 mil por mês, mais do que um professor. O penduricalho é pago pela Secretaria de Educação, e não pela pasta da Segurança Pública. Argumenta-se também que policiais não têm, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, nem na Constituição, qualquer função prevista na educação básica comum.
À época em que o governo Lula anunciou o encerramento do programa federal das escolas cívico-militares, a Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação (MEC) divulgou uma nota técnica com as alegações para o encerramento da medida. Apontou o “desvio de finalidade das atividades das forças armadas”, e destacou que a “execução orçamentária dos recursos de assistência financeira destinados às escolas do programa” foi insuficiente entre 2020 e 2022. O órgão também criticou o argumento de que as escolas cívico-militares poderiam ajudar a solucionar questões sociais das localidades em que estão inseridos, já que as unidades apresentam características diferentes uma das outras.
O que dizem os que defendem as escolas cívico-militares
Em defesa das escolas cívico-militares, Tarcísio de Freitas, Ratinho Júnior, e as assembleias estaduais argumentam que os estados e municípios receberam da Constituição competência para gerir as escolas de ensino médio e fundamental. Argumentam ainda que a gestão, a direção das escolas, o projeto pedagógico e a seleção dos monitores continuam a cargo das secretarias de educação, conforme as leis estaduais aprovadas.
Os professores, protagonistas no ensino, são civis concursados. E a escola só se torna cívico-militar caso haja aprovação, em consulta pública, pela maioria da comunidade escolar. Em defesa das escolas cívico-militares, Tarcísio de Freitas citou estudo da Escola Nacional de Administração Pública (Enap), segundo o qual o modelo “reduz a distorção idade-série em 10% e aumenta o desempenho dos alunos nas notas padronizadas em 15,25 e 11,61 pontos nas provas de Matemática e Português”.
“O modelo de Escola Cívico-Militar não pretende — ao invés do afirmado na inicial — substituir o modelo tradicional de escola pública, mas complementá-lo”, escreveu o governador de São Paulo na manifestação enviada ao STF. “O papel do monitor policial militar é delimitado e não se confunde com os papéis desempenhados pelos profissionais da educação”, afirmou ainda.
Ratinho Júnior destacou que o Paraná é o estado com mais escolas cívico-militares no país, com 312 unidades. Também refutou “militarização” dos alunos ou interferência dos policiais nos planos de ensino das escolas, que continuam condizentes com as diretrizes nacionais.
O Programa das Escolas Cívico-Militares não tem viés antidemocrático. Longe disso: busca promover e concretizar diversos valores indispensáveis para a vida em sociedade e para a construção de uma comunidade escolar tolerante e plural”, escreveu na manifestação ao STF.
“Por não se tratar de militarização, nem de incentivo à carreira militar, não há como dizer que o modelo implique violação ao direito de escusa de consciência ou à liberdade das crianças e adolescentes. Acrescente-se, ainda, que a maioria das escolas públicas permanece sob o regime tradicional, resguardando-se a escolha de pais, responsáveis e estudantes que, eventualmente, discordem do modelo”, afirmou o governador do Paraná.
Instituições e entidades que pedem o fim das escolas cívico-militares no STF
- PT
- Psol
- PCdoB
- Defensoria Pública de SP
- ONG Centro Santo Dias
- IBCCrim
- Advocavia-Geral da União (AGU), do governo Lula
- Ministério da Educação
- Ubes
- Sindicato de especialistas da educação
- Instituto Vladimir Herzog
- Coletivo MP Transformador
- Ação Educativa
- Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped)
- Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca)
- Centro de Estudos Educação e Sociedade (Cedes)
- Instituto Campanha Nacional pelo Direito à Educação
- Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização da Educação (Repme)
- Clínica de Políticas Públicas e Direitos Humanos da Universidade Federal do Abc (CPPDH/UFABC)
- Instituto Vladimir Herzog
- Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros e Intersexuais (Anajudh-Lgbti)
- Ministério Público do Paraná
- Defensoria Pública do Paraná
- Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Paraná
- Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD)
- Defensoria Pública da União (DPU)
- Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE)
Quem defendeu a continuidade das escolas cívico-militares no STF
- Governador Tarcísio de Freitas
- Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp)
- Governador Ratinho Júnior
- Assembleia Legislativa do Paraná
- Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul
- Tiago Souza Santos, cidadão e advogado
Fonte: Gazeta do Povo