Governo e STF resgatam ranço antiamericano para reagir a embate entre EUA e Moraes

Presidente dos EUA, Donald Trump; o ministro do STF Alexandre de Moraes; e o dono do X, Elon Musk: embate jurídico alcançou plano diplomático
Por Sílvio Ribas
No ano em que Brasil e Estados Unidos (EUA) celebram dois séculos de relações diplomáticas, o antigo discurso antiamericano, que marcou a esquerda latino-americana durante a Guerra Fria, ressurge no Palácio do Planalto e no Supremo Tribunal Federal (STF).
A retórica se tornou um instrumento da reação conjunta entre Executivo e Judiciário às pressões do governo de Donald Trump contra o ministro Alexandre de Moraes, motivadas pelas medidas de censura impostas pelo magistrado a cidadãos e empresas dos Estados Unidos.
No último dia 27, um dia após um setor do Departamento de Estado dos Estados Unidos divulgar nota criticando “atos antidemocráticos” do Judiciário brasileiro, a partir de episódios envolvendo decisões para bloquear usuários de plataformas digitais e até redes inteiras, Moraes reagiu no plenário do STF com tom nacionalista e afirmou que o Brasil deixou de ser colônia em 1822.
Tanto ele quanto o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, insinuaram, na ocasião, que o governo americano estaria alinhado ao “discurso de ódio” atribuído a grupos que contestam a atuação do tribunal e, sobretudo, supostos golpistas do 8 de janeiro de 2023.
Moraes recebeu apoio imediato de Flávio Dino e Gilmar Mendes, que publicaram mensagens de solidariedade em suas redes sociais. Em agradecimento, Moraes exaltou o Maranhão, estado governado por Dino, como símbolo de “luta por independência”.
Batalha jurídica e política entre STF e EUA escala para o plano diplomático
A crise, que inicialmente se restringia a âmbitos políticos e jurídicos, escalou para a esfera diplomática, o que aumenta as incertezas sobre os desdobramentos. A reação do STF se somou à da diplomacia brasileira, que acusou a gestão Trump de distorcer fatos. Apesar do tom patriótico adotado pelo Planalto e pela Suprema Corte, o pano de fundo das tensões reside no combate à aliança entre a Casa Branca e setores políticos e empresariais dos Estados Unidos contra a perseguição judicial às big techs e à oposição brasileira.
A cooperação entre opositores brasileiros e autoridades americanas já vinha se desenhando antes da vitória de Trump e se desdobra nas frentes jurídica, legislativa e administrativa. Com os impasses, o governo e STF apelaram à defesa da soberania. Na semana passada, a Comissão de Justiça da Câmara dos Estados Unidos aprovou um projeto que pode impedir a entrada de Moraes no país. O texto, denominado “Sem Censores em Nosso Território”, propõe barrar estrangeiros que atentem contra a liberdade de expressão.
Paralelamente, a plataforma de vídeos Rumble e a Trump Media, empresa do presidente, ingressaram com nova ação judicial contra Moraes, acusando-o de censura. A Justiça americana respondeu que as decisões do magistrado devem ser vistas como sem efeito nos Estados Unidos.
Além de iniciativas no Congresso e na Justiça dos Estados Unidos, Moraes está ameaçado por punições da Casa Branca, que estuda aplicar a Lei Magnitsky. Com ela, estrangeiros considerados corruptos ou inimigos de direitos humanos perdem visto e podem ter recursos financeiros bloqueados.
Discurso nacionalista busca também impedir atuação de Eduardo Bolsonaro
A escalada do embate entre STF e EUA atingiu o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), principal articulador da direita brasileira junto a Washington. O próprio Moraes enviou à Procuradoria-Geral da República (PGR) um pedido para reter o passaporte do deputado.
O encaminhamento é a resposta à notícia-crime que acusa Eduardo Bolsonaro de supostamente conspirar contra a soberania nacional. Os deputados governistas Lindbergh Farias (PT-RJ), Guilherme Boulos (Psol-SP) e Rogério Correia (PT-MG) são os autores da reclamação. Segundo o deputado do PL e seu pai, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), a articulação entre PT, STF e PGR visa não só silenciar suas denúncias sobre a situação política no país, mas também impedir que ele esteja à frente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara.
A crise tem reverberado entre políticos conservadores brasileiros, como a deputada Júlia Zanatta (PL-SC), que encontraram eco no discurso de Trump no Congesso americano, nesta terça-feira (4), no qual prometeu enfrentar o poder de “burocratas não eleitos”.
Enquanto Trump direciona as suas críticas ao establishment estatal, a direita brasileira foca no ativismo judicial e acusa o STF de usurpar competências do Executivo e do Legislativo, com o agravante de o Judiciário não ser formado por eleitos pelo povo.
Especialistas analisam o antiamericanismo presente no governo, STF e em parte da sociedade
O antiamericanismo da esquerda brasileira, particularmente do PT, tem raízes históricas, tendo seu ápice durante o regime militar, por creditarem seu início à colaboração dos EUA. Os laços de amizade do partido com a ditadura cubana reforçam o discurso contra o embargo econômico dos EUA, além da solidariedade a outros governos hostis a Washington, como Nicarágua e Venezuela.
Fundadores do PT, como José Dirceu e Fernando Gabeira, são proibidos de pisar nos EUA devido ao envolvimento com o sequestro do embaixador americano no Brasil em 1969.
Para o consultor empresarial Ismar Becker, Lula e Celso Amorim, assessor da presidência em relações exteriores, exercem o antiamericanismo que não poupa nem o aliado Joe Biden, antecessor de Trump. Ainda no governo do ex-presidente democrata, Lula já tinha apresentado uma agenda oposta à da Casa Branca em diferentes pontos, como a guerra entre Rússia e Ucrânia, relações com o Irã e o ataque ao dólar, por meio do Brics. Mas o fator decisivo na escalada de tensões foi o antagonismo entre Moraes e figuras influentes, como Elon Musk, dono do X e braço direito de Trump.
Com acesso privilegiado a Trump, Musk deverá continuar pressionando a Casa Branca a impor sanções concretas contra o ministro [do STF]”, aposta.
Já para a professora de Relações Internacionais Natália Fingermann, da ESPM, as manifestações de Lula e do STF refletem mais rejeição a Trump do que o sentimento antiamericano. “A aversão aos EUA não é representativa na sociedade e no governo”, diz. Por outro lado, o cientista político Ismael Almeida argumenta que o discurso antiamericano perdeu força no tempo e que Lula até manteve boas relações com Biden. Assim, a retórica contra os EUA serviria para encobrir o interesse do atual governo em proteger Moraes.
Hoje, o STF é o principal ponto de apoio político de Lula. A Corte desempenha, ainda que indiretamente, papel crucial no combate à oposição”, salienta Almeida.
Nos últimos dias, Lula elevou o tom contra Trump, o acusando de querer ser “o xerife do mundo”. As críticas da gestão petista ao governo americano ocorrem no mesmo momento em o Brasil pode alvo da elevação de tarifas por parte dos EUA.
No mês passado, Trump pediu que seu governo elaborasse um plano para aplicar tarifas recíprocas sobre todos os parceiros comerciais do país, para aplicá-las a partir de 2 de abril. Um dos setores que podem ser mais atingidos é o etanol. No primeiro mandato do republicano, o Brasil já sofreu ações protecionistas, sobretudo no aço.
Fonte: Gazeta do Povo