Comportamento & Equilíbrio

A cegueira da justiça e da sociedade — Parte I

A cegueira da justiça não está na venda dos olhos para tornar todos iguais. Não. Todos não são iguais para a justiça. Ela é cega para as crianças que estão implorando por proteção e são jogadas nas jaulas dos leões estupradores

O filme acabou. As luzes foram acesas. Ninguém se mexeu das cadeiras. Aquelas letrinhas que passam e não olhamos era a imagem que a plateia tinha. E continuávamos imóveis. Como que congelados, petrificados. Um fenômeno que ocorre em alguns filmes, com algumas pessoas. Mas foi a primeira vez que todos foram invadidos pela mesma paralisação. E eu era um de todos.
Fui invadida por uma centelha de esperança. Tenho a sensação de que ela está em coma dentro de mim. Mas se ficamos todos paralisados diante do que tínhamos acabado de assistir, então há uma capacidade de empatizar com a situação trazida pelo filme. Não é nova. Várias vezes já ocupou lugar de destaque nos veículos de comunicação. Políticos já se aproveitaram de sua característica escandalosa e cruel. A exploração da pobreza é secular entre nós. Alguém sempre ganha com a miséria do outro.

Hoje a comercialização da Miséria Econômica é muito rentável e presta vários serviços, sendo o principal deles o controle social. Mas a Miséria Psicológica, pouco falada, porém amplamente expandida, mutila a humanidade. Invisível, ela é avassaladora.

O filme tinha exibido em sombras e escassez a miséria visível de uma família, em uma casa de um só cômodo, em palafita, fazendo parte do mangue que a margeava. Pouca comida, pouca roupa, pouco tudo. Ou melhor, quase nada. Quatro filhos e um na barriga, a caminho. Quatro redes para dormir e uma cama dividida pelo pai e a filha mais velha, escolhida por ele todas as noites, 13 anos. Mas era pela manhã que ele levava essa filha pelo igarapé, num ritual macabro, percorria o mesmo caminho nas águas.

Para além da ilha do Marajó, exploração sexual infantil é um problema antigo no país inteiro (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Mas a Miséria Psicológica, invisível, porém perceptível nos silêncios daquela mãe com sua barriga. O sofrimento enorme que não mexia um só músculo do rosto, nenhum som, nenhuma lágrima, dando a impressão que haviam, literalmente, secado, mas que falava pelos olhos.

Em meio a essa situação de tantas misérias, um pai que bradava uma moral contraditória. Puniu severamente com espancamento a filha que levava no barco para o meio do mangue onde cometia estupros, e a trancou em cubículo escuro, sujo, tudo era sujo, porque ela foi buscar dinheiro no barco grande. Isso ele não admitia. Uma moral, com regra, unicamente, patriarcal.

Estava ali, diante daquela plateia, a hipocrisia da nossa sociedade. Todos tinham conhecimento de que aquilo, aquelas misérias existem e continuam a existir com nossas crianças. A diretora, Mariana Brennand, teve a delicadeza e a firmeza conjugadas em uma obra de Arte que também é do nosso cotidiano. Ela escutou as meninas da Ilha de Marajó, escutou as histórias de vida das crianças barqueiras, não teve medo de chegar bem perto das misérias que fazem parte de nosso imaginário como sendo bem distantes. Estão bem ali. Estão bem aqui, ao nosso lado. A Miséria Psicológica é desoladora.

(Foto: Freepik)

Nossa sociedade não quer ver. A cegueira da justiça não está na venda dos olhos para tornar todos iguais. Não. Todos não são iguais para a justiça. Ela é cega para as crianças que estão implorando por proteção e são jogadas nas jaulas dos leões estupradores. E a justiça insiste em dizer uma insanidade que, como uma dança das cadeiras, troca a denúncia de abuso sexual intrafamiliar, crime, por uma falácia de alienação parental.

Quando vemos juízas e juízes, desembargadoras e desembargadores afirmarem por cima de provas materiais e do sofrimento, desespero, explícito de uma criança, que ela é “teleguiada” a distância por sua mãe que ficou raivosinha com a separação, e quer se vingar do pobre ex, acusando-o de abuso sexual, fica a pergunta: ela implantou um chip na cabeça do filho ou filha? E por um controle remoto, talvez adaptado dos joguinhos virtuais, essa mãe, gênio, faz a criança, uma marionete, agora reborn, repetir os relatos dos atos praticados, desenhar os atos praticados, chorar de desespero, mesmo na ausência da mãe, ter terrores noturnos assustadores, apresentar sintomas ao ver a figura do genitor, ter sintomas psicossomáticos em profusão, dores, gagueiras, vômitos, incontinências, ao saber que vai ter que ir ficar com esse genitor porque o juiz mandou, tudo isso mexendo aqueles botões para frente e para traz e para os lados. A cegueira é da justiça e da sociedade. De todos nós, por ação ou omissão. Caminhamos para o mangue. Mas a culpa é da mãe. Sempre.

Ana Maria Iencarelli

Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos.

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