Comportamento & Equilíbrio

A Criança, a Sociedade, a Justiça — Parte I

Como a voz da criança não é escutada, e a voz da mãe é repleta de estereótipos seculares, de nada adianta o relato e mesmo as provas dos abusos. A justiça é cega mesmo

Poucas vezes na minha vida, que já é longa, fui invadida por um desânimo. Confesso que esse é um desses raros momentos, para mim, dolorosos. Vejo se acumular, em proporções geométricas, as arbitrariedades jurídicas que destroem o futuro de milhares de crianças, matando suas mães em sua dignidade de pessoa humana.
Para as mulheres que decidiram pela Maternidade, o Maternicídio, termo talhado por Hélia Braga, é certo, marcado se pairar uma alegação da alcunha falaciosa de alienadora. Este termo, sem comprovação científica, sem comprovação empírica, sem comprovação de bom senso. Em contorcionismos sucessivos, um mosaico de conceitos foi sendo engendrado para desfocar o crime e supervalorizar um estado emocional, que, na maioria das vezes, tem motivação. Ou seja, desde uma preocupação com um pai alheio aos cuidados necessários com a criança, ou negligente, ou irresponsável, até a preocupação com o genitor, não pai, ativamente abusador.

(Foto: Freepik com IA)

Como a voz da criança não é escutada, e a voz da mãe é repleta de estereótipos seculares, de nada adianta o relato e mesmo as provas dos abusos. A justiça é cega mesmo. É tudo alienação da mãe. Não consigo entender como não se faz uma continha de aritmética inicial, e não há nenhuma desconfiança, mesmo que leve, que os números contabilizados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2024, mostram que uma criança é abusada a cada seis minutos. Onde estão essas crianças? De onde foram tirados esses números desse levantamento oficial? O que vigora é que 90% das denúncias de abuso sexual de criança são falsas. Isso é dogmático, porque as mães são ressentidas e vingativas, e não se conformam com o término da relação. Mas, esse não é o motivo que cobre um grande percentual, talvez 90%, estou chutando, dos feminicídios? Desconheço a figura do “homenicídio”, ou “masculinicídio”.

O Feminicídio atingiu o índice de uma mulher a cada seis horas. Essa é outra continha aritmética que não fecha. Se as mulheres são ressentidas e vingativas, por que elas são assassinadas pelos ex-companheiros? E, na maioria das vezes, na presença das crianças. Mas, não temos notícia do resultado desse inconformismo de mulheres matando seus ex-companheiros.

E claro, se tudo é alienação parental da mãe, os “cursos” com direito a diploma e inclusão em listagem de especialista e lista oficial de “peritos” que passam a ter altos ganhos, financeiros e de “prestígio profissional”. Com um estratégico “empurrão” acessam a blindagem contra possíveis processos pelos absurdos escritos em laudos.

Falta honestidade profissional. As falhas de caráter brotam na escala de agentes que, além de trocar um fato relatado por uma interpretação, pretensamente, psicanalítica, usam a difamação de profissionais que seguem resistindo à deturpação imposta. Sem a menor cerimônia, quebram os seus códigos de ética, e avançam até no campo pessoal, com inverdades, para atingir a ferramenta profissional daqueles que não seguem essa cartilha de barbárie.

Violência contra a mulher (Foto: Freepik)

O desânimo inunda. Crianças, visivelmente, desesperadas, aos gritos, se autoflagelando, sendo entregues aos seus abusadores. Mulheres, com Medidas Protetivas emitidas pelo Ministério Público, sendo obrigadas a ter contato com quem as espancava, porque acredita-se que assim a criança vai pensar que os pais não brigam mais, que está tudo bem. Essa visão de criança mamulengo é muito frequente. Ela não tem vontade, aliás isso também é bradado por uma pessoa que dita essas regras aberrantes, não há respeito por ela.

Mas, aviso, o desânimo é uma energia nefasta, sim, contudo ele se transforma em força motora. A decepção em certas criaturas precisa ser matéria-prima para o fortalecimento dessas crianças, com um melhor aprimoramento do enfrentamento desse barbarismo. Barbarismo de predadores de crianças. Barbarismo institucional de agentes que garantem o acobertamento de criminosos, como escreveu uma jurista.

É preciso não esperar as respostas que rondam nossas mentes quando entramos em contato com esse submundo humano. Infelizmente é humano. Os animais são mais éticos com seus filhotes. As perguntas, muitas vezes, esbarram no “como”. Realmente, é de difícil compreensão se pensar em como, diante de evidências, de relatos pormenorizados e compatíveis com a idade, de provas em vídeo e exames de Corpo de Delito, um agente escolhe prestigiar um abusador, escrevendo interpretações descabidas até pela lógica.

Esse é o momento em que surge aquela intrigante indagação: como consegue deitar a cabeça no travesseiro e dormir? Penso que a resposta é simples. Não há capacidade de empatia, não há espaço para sentir nada pela criança. É um jogo de Poder. Ter o Poder é um prazer maior. Juntar-se é somar. A Identificação com o Agressor se encarrega de ninar essa cabeça.

Ana Maria Iencarelli

Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos.

Related Posts

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

EnglishPortugueseSpanish