Vulnerabilidade na Criança, suas diversas formas — Parte II
A palavra vulnerável traz a característica que aponta para a deficiência da capacidade de defesa da Criança
Como falamos no último artigo, a vulnerabilidade tem sua localização primeira na discrepância dos tamanhos de uma Criança frente a um adulto. Inegavelmente, esta é uma condição primeira. Não é à toa que ela vem nos desenhos das Crianças na expressão de uma figura, representando o adulto, com várias mãos, muito característica nos casos de Crianças abusadas sexualmente. É a sensação de impotência física extrema que é retratada com as múltiplas mãos.
Mas, o conceito de Vulnerabilidade, usado na tipificação desse crime, o Estupro de Vulnerável, deve ultrapassar esse aspecto físico que se diluirá ao cabo do crescimento, ao fim da adolescência. O que é muito emblemático é que, mesmo não havendo mais diferença de tamanho e de força física, a pessoa que foi abusada não consegue apreender seu tamanho e sua força diante daquele adulto que a molestava durante a infância.
Ao contrário dessa atualização de tamanhos, o que se vê é que a dominação permanece. Ou seja, o medo impresso no mais profundo da mente continua ativo, em posição de defesa como se pequeno continuasse sendo. Daí a dificuldade tão frequente da revelação das práticas dos abusos, que são carregadas em segredo por muitos anos da vida adulta. Por várias vezes, fui escolhida depositária, no consultório clínico de psicanálise, desse segredo guardado por algumas ou muitas décadas. Segredo que é vomitado sempre com muito sofrimento, embebido em medo e culpa, pelo rompimento do pacto do silêncio que protege o abusador.
Não raro, esse pacto do silêncio sobre os abusos é compactuado por alguns membros da família, fortalecendo a proteção do abusador, sob a alegação de evitar um “escândalo”, porque seria vergonhoso para a família, mas sem nenhuma empatia com aquela pessoa, ainda Criança, deixando-a desamparada.
O termo jurídico Estupro de Vulnerável conjugou os dois elementos desse crime. Ampliou a dimensão para todos os atos libidinosos praticados com a Criança ou adolescente, independente de ter havido ou não penetração peniana. Assim, contemplou a grande maioria das práticas realizadas por abusadores que, sendo muito dissimulados e manipuladores, evitam deixar rastros, se atendo às manipulações, masturbações, carícias lascivas, beijos, de toda ordem, e amplo uso do dedo indicador. Até mesmo comportamentos que não tocam o corpo da Criança, como assistir com ela a filmes pornográficos, estão incluídos nessa denominação de estupro.
A palavra vulnerável traz a característica que aponta para a deficiência da capacidade de defesa da Criança. Por isso, faz-se necessário que entendamos sua dimensão maior, nem sempre considerada, para além do aspecto físico discrepante.
Há que se entender o estupro na sua dimensão traumática em qualquer ato que se refira à sexualidade do adulto, imposta à Criança. Fazemos rapidamente a associação de ideias: estupro com violência visível, com lacerações. Equívoco. Invadir a mente e o corpo da Criança com práticas sexuais alheias à sua faixa etária é estupro. Esse “calo semântico” atrapalhou, porque continua a ser considerado como se os estupros sem lacerações e rompimentos fossem de menor importância, de menos valia. Todo ato que seja excessivo ao suportável pela mente da Criança, é prejudicial. Isto está no conceito de trauma.
Curioso observar que, defensores da lei de alienação parental, o que foi uma invenção criada para desviar a atenção dos estupros intrafamiliares, sem comprovação clínica nem científica, bradam o comportamento de mães que tentam proteger seus filhos de abusos incestuosos, como sendo uma imperdoável violência psicológica, desconsiderando a violência psicológica que também faz parte dos inúmeros estupros de vulneráveis. Por que serve para afastar a mãe por alegação da falácia da alienação parental, como se, até mesmo se a mãe fizesse campanha contra o pai, mas não se constitui em deformação de caráter como o é no caso do estupro de vulnerável?
Talvez, a maior das vulnerabilidades e que mais sequelas deixa, seja a da credibilidade do adulto, e, em especial, dos adultos afetivos, com quem a Criança constrói vínculos. Preciso entender que os vínculos afetivos da infância são uma mistura do afeto com a dependência e, em última análise, com a preocupação com a própria sobrevivência. O acreditar na palavra daquela pessoa grande abrange desde a resposta à curiosidade sem muita importância até a recomendação de que um comportamento pode matar, como, por exemplo, enfiar o dedinho na tomada elétrica. Hoje já sanado pelas tomadas desenhadas com essa prevenção.
Este acreditar patrocina a repetição dos abusos indefinidamente. A Criança é dependente de tudo e é a confiança nos adultos cuidadores que lhe permite usufruir de cada novo conhecimento. A Criança acredita que o abuso de ontem foi o último.
O tecido da confiança no adulto cuidador é fundamental para o crescimento e a formação do caráter. Esse tecido de confiança e afeto fornece uma sensação de garantia de proteção, em contraponto com a condição de vulnerabilidade do tamanho físico e do tamanho mental. Ou seja, a construção da credibilidade e da confiança no adulto cuidador é constitutiva do desenvolvimento psicológico saudável da Criança.
Mas, o que vemos é uma cobrança que vem no formato daquela pergunta feita um milhão de vezes: por que você não gritou? Por que você não falou quando aconteceu? Por que você não disse NÃO para ele?
Esse é mais um atestado de vulnerabilidade que é remarcado para a Criança. E ele vem recheado de culpa, como se a Criança tivesse feito algo de errado ou de ruim porque não foi acima de sua vulnerabilidade. Como se fosse possível.
A crença na palavra do cuidador é fundamental na construção dos códigos da vida em sociedade. Essa é a vulnerabilidade que causa maior estrago psicológico quando é usada de maneira perversa, para obtenção de mais Poder para o adulto violador dessa regra do respeito.
As consequências são desastrosas, mas invisibilizadas por segredos pactuados, familiares e institucionais. As sequelas são permanentes e, muitas vezes, irreversíveis. Como resgatar a confiança e a credibilidade quando um adulto, com título familiar, que foram rompidas, perversamente. Falaremos dessas sequelas no próximo artigo.
P.S. Peritos da ONU apelam ao novo governo para combater a violência contra Mulheres e Meninas e REVOGAR a Lei sobre “Alienação Parental”.