Comportamento & Equilíbrio

Como e por que matamos nossas Crianças e Adolescentes? — Parte III

Eu não sei. Deveria saber. Parece que não estamos suportando as perspectivas desastrosas que são anunciadas a todo momento para um futuro próximo, mas que já começou

Eu não sei. Tenho tentado refletir sobre essas duas perguntas: como e por quê? Não consegui muita coisa. Talvez em relação ao “como” algumas evidências surjam quando temos balas de fuzis matando. Mas pouco surge se pensamos na outra modalidade de morte de Crianças e Adolescentes. Mesmo as orgânicas que se impõem pela negligência do Estado, pela ausência do Estado, pelos assaltos ao Estado realizados por perversos que não têm nenhuma empatia com os pequenos indivíduos, também aqui, PPP, porquanto são o alvo pela vulnerabilidade concentrada que carregam.

Eu não sei. O como também aparece camuflado. Camuflado de culpa por falta de cuidado e responsabilidade da família que luta para oferecer aos pequenos uma refeição por dia, e nem todos os dias consegue, como se ficasse sempre insinuado que a culpa é pela falta de esforço que não fizeram. E, na cidade partida, as Crianças e Adolescentes que têm o que comer, e bem, e onde estudar e se divertir, viajar, são mortas pela negligência afetiva, pelos espancamentos intrafamiliares, pelos incestos dentro de suas próprias casas. Às vezes chegam a óbito, mas muitos se tornam mortos-vivos arrastando dores intermináveis.
Eu não sei. Deveria saber. Hoje, com o advento do pós-pós-doc Google, todos sabem tudo. É só fazer uma consultinha a ele. O conhecimento de todas as áreas chega em raspas raladas no ralador de queijo, um fragmento misturado com uma dose de pensamento mágico é o suficiente para formatar uma argumentação com pretensões científicas. Vivemos a era das pseudociências.

Lemos o celular. Não lemos livros. Mas temos certezas inabaláveis sobre tudo.
Parece que não estamos suportando as perspectivas desastrosas que são anunciadas a todo momento para um futuro próximo, mas que já começou. O jogo entre a impotência e a onipotência é travado, ininterruptamente. A impotência é insuportável, a onipotência oferece uma ilusão de conforto por um triunfo sempre desejado.

Assim, compramos ideias que são resultado de pensamento mágico, fase do desenvolvimento cognitivo da infância. Como era apaixonante ver, diante dos olhos, o mágico fazer sumir uma bengala ou fazer aparecer uma pombinha branca, contrariando as leis da realidade. A ilusão sempre atraiu o ser humano. O álcool e as drogas se alojam nessa busca de alteração da realidade. E, por isso, são tão antigos quanto o homem.

Retorno para o meu não sei. Eu não sei como matamos 37 Crianças e Adolescentes à bala, nos mais diferentes lugares e situações, nos oito primeiros meses do ano, na cidade do Rio de Janeiro. Como? A incidência é estarrecedora. Mas logo será esquecida. Não quero trazer aqui os Feminicídios em escalada também estarrecedora. Temos uma Lei, com “L” maiúsculo. Não conseguimos cumprir a lei? Semelhante ao matar Crianças e Adolescentes que também não cumprimos a outra Lei com “L” maiúsculo, o Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA, que reza a Proteção Integral dos pequenos e vulneráveis de nossa sociedade. Essas duas Leis são inspiração para muitos países que as copiam no que é possível para a devida adaptação em suas sociedades. São copiadas por muitos países, mas não protegem Crianças, Adolescentes e Mulheres brasileiras. Como isso? É outro “como’ que tenho que escrever de novo, eu não sei.

Quem está perdido, a bala ou nós? (Foto: iStock)

E o porquê do título? Por que matamos nossas Crianças e Adolescentes? Aqui, me sinto mais incapaz ainda de chegar a algum lugar lógico-afetivo. Por que? Por que matamos nossas crias? As genéticas e, também, as sociais. Esse “por que” é como uma espinha de peixe que atravessa a garganta e ali fica enganchada. A mim me parece destituído de uma mínima réstia de razoabilidade esse por que.

Por que matar uma Criança de quatro anos de pancadas, chutes, socos, batendo sua cabeça contra a parede ou o chão? Por que matar uma Criança de cinco anos com atos os mais variados de tortura? Hematomas de várias idades, queimaduras de primeiro, segundo e terceiro graus de vários tamanhos, hemorragia cerebral, mantendo-a amarrada na cama em meio a excrementos, por quê?

Seria ódio? Mas por que aquele menino, aquela menina, provocariam um ódio tão extremado, tão inimaginável até que somos impactados pela notícia midiática. Não era segredo, muitos do entorno dessas e de outras Crianças e Adolescentes tinham conhecimento do sofrimento atroz que eles passavam, cotidianamente. Ninguém teve empatia pela dor que sentiam? Apesar de todos os canais possíveis de denúncia, até de modo anônimo, ninguém se sensibiliza com a dor de um pequeno. E aí, surge o protetor “segredo de justiça”. O agressor goza do privilégio de Proteção do Estado. A Criança será estigmatizada porque, se não morreu, será entregue a seu agressor, beneficiado pela lei de alienação parental que condena a mãe à perda da guarda do filho ou filha.
Quantas já foram mortas? Por quê? Eu não sei.

Ana Maria Iencarelli

Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos.

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