Estudos identificam ações das células de defesa que lesam o organismo na sepse
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Por Ricardo Zorzetto/Revista Pesquisa Fapesp
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No Brasil, um em cada três leitos nas unidades de terapia intensiva (UTIs) é ocupado por uma pessoa com sepse, uma resposta desajustada do sistema de defesa que surge em consequência de uma infecção. Estima-se que, a cada ano, cerca de 420 mil pessoas sejam internadas com a síndrome no país e que quase 230 mil morram. Publicados em 2017 na revista The Lancet Infectious Diseases, esses cálculos resultam do primeiro estudo que avaliou em uma amostra representativa das UTIs brasileiras — um total de 227, de todas as regiões — a frequência dos casos de sepse e de mortes relacionadas a ela. Bastante elevada, na casa dos 55%, a taxa de mortalidade por esse problema no Brasil é bem superior à de nações mais ricas (26%) e está estagnada há mais de uma década.
“Hoje a mortalidade por sepse no País é semelhante à que havia sido estimada no início dos anos 2000”, conta o médico intensivista Luciano Pontes de Azevedo, do Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE), que coordenou a pesquisa de 2017 em parceria com a infectologista Flávia Ribeiro Machado, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
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O comportamento da mortalidade observado entre adultos não é muito diferente do encontrado entre crianças e adolescentes. A frequência de sepse é menor entre elas. Estima-se que ocorram 75 casos em cada 100 mil crianças (ante 290 por 100 mil entre adultos), o que significa 42 mil casos por ano. Mas há quase três décadas a taxa de mortalidade permanece em 20%.
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Nos anos 1960, a mortalidade infantil por sepse superava 60%. Conseguimos reduzir para 20%, mas depois não caiu mais”, relata a médica intensivista Daniela de Souza, do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo (HU-USP). Ela é a atual presidente do Instituto Latino-americano de Sepse (Ilas) e a autora principal do estudo publicado em 2021 na revista The Lancet Child & Adolescent Health que avaliou a frequência de sepse em UTIs pediátricas brasileiras.
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Algumas características do sistema de saúde ajudam a entender esses números. Uma é a falta de atendimento e monitoramento adequados a partir do momento em que a pessoa com sepse chega ao hospital. Diante da alta mortalidade nas UTIs, Azevedo e Machado decidiram investigar o que se passava nos prontos-socorros, a porta de entrada das internações. Por três dias, eles e colaboradores registraram os casos suspeitos de sepse atendidos no setor de emergência de 74 instituições de saúde brasileiras.
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Das 331 pessoas com quadro compatível com sepse atendidas nos prontos-socorros, só 53% foram encaminhadas em até 24 horas para um leito de enfermaria ou UTI, onde há condições melhores de tratar casos graves. Por falta de vagas nas UTIs, 39% dos pacientes com sepse atendidos em instituições públicas permaneceram no pronto-socorro durante toda a internação, que em alguns casos durou 13 dias, e pouco mais da metade deles (55%) morreu ali mesmo. Nas instituições particulares, 9% ficaram no setor de emergência, segundo os resultados do trabalho, publicado este ano na revista Internal and Emergency Medicine.
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Tratar casos de sepse em pronto-socorro é inadequado. Não há condições de fazer o monitoramento de que esses pacientes necessitam”, afirma Azevedo.
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Além do atendimento em instalações inapropriadas, os especialistas citam dois outros fatores que podem retardar o início do tratamento: a população desconhece o que é sepse e os profissionais da saúde têm dificuldade de identificá-la, por ter sintomas que podem ser confundidos com outros problemas (febre, taquicardia, respiração ofegante e confusão mental). Um levantamento feito anos atrás pelo Ilas com 2.126 pessoas em 134 municípios brasileiros mostrou que 93% nunca tinham ouvido falar em sepse e desconheciam o que era preciso fazer, enquanto 98% sabiam o que era infarto, que tem mortalidade 10 vezes inferior à da sepse, e que deveriam buscar ajuda médica. “Retardar o diagnóstico e o início do tratamento aumenta o risco de morte”, comenta Souza.
49 milhões de casos de sepse ocorrem por ano no mundo, segundo estimativas recentes
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Algumas iniciativas já mostraram que é possível reduzir a mortalidade por sepse. De 2004 a 2015, um grupo do Ilas auxiliou 63 hospitais brasileiros (25 públicos e 38 privados) a criar equipes para lidar com a sepse e implantar procedimentos desenhados por uma comissão internacional de especialistas para reduzir os óbitos. São medidas padronizadas que devem ser adotadas nas seis primeiras horas após a internação, como o monitoramento e o controle da pressão arterial, a avaliação do nível de oxigenação dos tecidos, a coleta de sangue para identificar a presença de agentes infecciosos e a administração de antimicrobianos.
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Em quatro anos de acompanhamento, a taxa de mortalidade dos hospitais caiu de 54%, em média, para 39%, segundo dados publicados em 2017 na revista Critical Care Medicine. A redução foi maior e mais duradoura nas instituições privadas, onde passou de 48% para 27%, e menor (de 61% para 55%) e mais breve nas públicas, que costumam ter menos recursos e leitos de UTI, além de equipes menores.
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Para mudar as taxas atuais, é preciso conscientizar a população, os profissionais da saúde, os gestores de hospitais e a administração pública da relevância do problema”, afirma a presidente do Ilas.
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É uma questão de saúde pública internacional. Afinal, calcula-se que 20% das mortes no mundo sejam decorrentes de sepse. A cada ano são cerca de 49 milhões de casos e 11 milhões de óbitos, segundo estimativas publicadas em 2020 na revista The Lancet. Quarenta por cento dos casos ocorrem em crianças menores de cinco anos.
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A mortalidade por sepse pode ser bastante reduzida no Brasil e em outros países apenas com os instrumentos de que dispomos hoje”, afirma o infectologista Reinaldo Salomão, chefe do Laboratório de Pesquisa em Sepse da Unifesp e um dos fundadores do Ilas.
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Ele fala com a experiência de quem estuda sepse há mais de 30 anos e já viu promessas de tratamentos mais eficazes surgirem e serem descartadas por se mostrarem ineficientes. Desde que se interessou pelo tema, ainda na residência médica, Salomão testemunhou o conceito de sepse mudar três vezes. Em sua definição mais antiga, que vigorou por décadas, a sepse era considerada uma infecção generalizada.
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O agente patogênico (bactéria, fungo, vírus ou outro microrganismo) se disseminava pelo organismo, que, na tentativa de combatê-lo, originava uma inflamação que atingia todo o corpo. Essa ideia começou a vir por terra nos anos 1980, quando se descobriu que moléculas de comunicação (citocinas) liberadas pelas células de defesa podiam ativar uma inflamação disseminada, mesmo que a infecção continuasse restrita a um órgão.
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O peso recaiu, então, sobre a inflamação e, em 1991, um grupo internacional de especialistas propôs o seguinte conceito para a sepse: uma inflamação sistêmica que surge em decorrência de uma infecção. Dez anos depois o conceito foi refinado para caracterizar melhor os níveis de gravidade e definir sintomas e critérios laboratoriais que indicassem o grau de danos aos órgãos. Ao testar estratégias para controlar essa inflamação, no entanto, os médicos perceberam que o fenômeno era bem mais complicado. Havia pessoas que, sim, respondiam à infecção com uma inflamação exacerbada. Mas havia outras em que a resposta inflamatória estava diminuída. Em 2016, a sepse passou, então, a ser compreendida como uma disfunção orgânica com risco de morte causada por uma resposta desregulada do hospedeiro a uma infecção.
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Essas mudanças foram importantes para incorporar novos conhecimentos ao conceito e direcionar a busca de alvos terapêuticos”, conta Salomão. “Nesse tempo todo, descobrimos que os pacientes são heterogêneos e respondem à infecção de acordo com as características genéticas, a idade e as doenças preexistentes. Também aprendemos que a sepse envolve a modulação simultânea de genes que coordenam processos biológicos de combate à infecção e de outros que tentam evitar danos aos tecidos”, afirma o pesquisador, que discute essas ideias em uma revisão publicada em 2019 no Brazilian Journal of Medical and Biological Research.
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Na Unifesp, Salomão e sua equipe realizam experimentos com células de defesa isoladas do sangue de pacientes com sepse com o objetivo de compreender quais fenômenos representam uma resposta disfuncional do organismo e, em princípio, deveriam ser combatidos — e quais indicam uma tentativa de adaptação a um ambiente hostil e poderiam ser estimulados.
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Em uma das contribuições recentes, o grupo verificou que, no início da sepse, as células do sistema imune adotam uma estratégia aparentemente menos eficiente de produzir energia, mas que favorece a eliminação dos agentes infecciosos. A biomédica Bianca Lima Ferreira identificou essa alteração no funcionamento das células ao comparar a produção de proteínas de monócitos e linfócitos extraídos do sangue de pacientes em dois momentos — no dia da internação e uma semana mais tarde.
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Na ausência de infecção, essas células, assim como as demais do corpo, usam a glicose dos alimentos para produzir energia por meio da respiração celular, um processo químico que consome oxigênio e gera 32 moléculas de trifosfato de adenosina (ATP), o combustível celular. Ferreira notou que, já no início da infecção, os monócitos e os linfócitos das pessoas com sepse haviam desligado a respiração celular e produziam energia por meio da glicólise anaeróbica, como haviam observado um pouco antes pesquisadores do Rio de Janeiro.
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Embora renda apenas duas moléculas de ATP, esse processo é mais rápido e evita o consumo de ingredientes que entram na produção de espécies reativas de oxigênio, compostos usados no combate aos invasores, e na produção de citocinas, sinalizadores que atraem outras células de defesa para o local da infecção.
Uma semana mais tarde os monócitos e os linfócitos diminuíram o uso da glicólise e da produção de citocinas, o que pode evitar danos às células sadias, mostraram os pesquisadores em artigo publicado em 2022 na Frontiers in Immunology.
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Essa desativação parece ser uma tentativa de retorno à normalidade, e não um esgotamento da célula, já que a maioria desses pacientes sobreviveu à sepse”, conta Ferreira.
Em outro trabalho, realizado em parceria com a equipe do imunologista Tom van der Poll, da Universidade de Amsterdã, nos Países Baixos, o bioinformata Giuseppe Leite analisou o perfil de expressão dos genes e da produção de proteínas de uma gama maior de células de defesa encontradas no sangue de pessoas com sepse. Publicados em 2021 também na Frontiers in Immunology, os resultados indicaram tanto o aumento da atividade das células que integram a primeira linha de defesa, como os monócitos e os neutrófilos, quanto a supressão dos linfócitos, células do sistema imune que entram em ação em um segundo momento de uma infecção. “Mostramos que, na sepse, os dois fenômenos ocorrem simultaneamente”, explica Salomão.
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11 milhões de pessoas morrem por ano por causa da síndrome, o correspondente a 20% dos óbitos mundiais
Enquanto o grupo da Unifesp trabalha para conhecer a capacidade de resposta das células de defesa, a equipe do imunofarmacologista Fernando de Queiroz Cunha, no campus da USP em Ribeirão Preto, investiga como a ação do sistema imunológico, além de destruir o agente causador da infecção, danifica o próprio organismo e agrava a situação. Nas duas últimas décadas, ele e seus colaboradores identificaram ao menos dois mecanismos que lesam os tecidos saudáveis.
O primeiro, detalhado em artigos publicados entre 2006 e 2010, é a produção de óxido nítrico (NO), uma molécula altamente reativa que interage com as estruturas das células e as danificam. Diferentes células do sistema imune sintetizam NO e o lançam sobre os patógenos. Na sepse, porém, essa produção atinge níveis mil vezes superiores ao normal, o que prejudica o desempenho das células de defesa, faz baixar drasticamente a pressão arterial e avaria as células de órgãos como o coração (ver Pesquisa Fapesp nºs 146 e 172). Mais recentemente a equipe de Cunha encontrou um segundo mecanismo: a liberação de armadilhas extracelulares pelos neutrófilos.
Neutrófilos são as células de defesa muito abundantes no sangue e uma das primeiras a migrar para o foco de infecção. Ao encontrar um patógeno, o neutrófilo o envolve e lança sobre ele um banho corrosivo de óxido nítrico. Se a situação foge ao controle, sinais do ambiente levam o neutrófilo a desenovelar o seu DNA e, em um evento explosivo e suicida, lançá-lo embebido em compostos tóxicos sobre os invasores.
Em experimentos simulando a sepse em camundongos, a farmacologista Paula Czaikoski constatou que a liberação dessas armadilhas de DNA era um dos mecanismos de lesão nos órgãos. Sua produção aumenta muito após o início da infecção — algo observado também no sangue de pessoas com sepse — assim como os danos aos tecidos. A infecção e as lesões só foram controladas com o uso de um antibiótico associado a uma enzima que degrada o DNA e é usada para tratar fibrose cística, segundo resultados publicados em 2016 na revista PLOS ONE.
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Essa e outras formas de tentar desfazer essas armadilhas estão sendo avaliadas em testes clínicos”, conta Cunha.
Seu grupo, que participou da força-tarefa da USP para estudar a covid-19, mostrou em um artigo publicado no Jornal of Experimental Medicine em 2020 que esse também é o mecanismo por trás de parte das lesões pulmonares causadas pelo novo coronavírus.
Em paralelo à identificação desses mecanismos, o imunofarmacologista José Carlos Alves Filho e a biomédica Daniele Nascimento descobriram duas causas da imunossupressão duradoura observada nos sobreviventes da sepse. Uma, descrita em 2010 na Critical Care Medicine, é a proliferação de linfócitos T reguladores, células do sistema imune que suprimem a reposta inflamatória e desativam outras células de defesa. Tecidos lesionados liberam citocinas que ativam mecanismos de reparo e estimulam a multiplicação desses linfócitos. Em 2021, na revista Immunity, a dupla demonstrou que uma subpopulação de linfócitos B libera altas doses de um composto que desativa os macrófagos, células que englobam e destroem os patógenos. “Nos experimentos com roedores, esses linfócitos B permaneceram ativos por muito tempo”, relata Alves Filho.
Apesar dos avanços na compreensão dos mecanismos envolvidos na sepse, o tratamento não deve mudar tão cedo. Por ora, afirmam os especialistas, o mais eficaz ainda é combater a infecção com antimicrobianos o mais cedo possível, para evitar que saia do controle, o que já seria suficiente para reduzir a mortalidade.
Fonte: GizModo