Comportamento & Equilíbrio

A responsabilidade dos pais com os filhos, observando passarinhos e humanos — Parte I

Talvez estejamos precisando voltar à simplicidade, e aprender com os passarinhos. Resgatar Princípios e Valores que já foram óbvios e hoje sumiram

No meu local de trabalho, tenho um jardim. Muito verde, flores, orquídeas e três pés de jabuticaba. Num deles, por cima de um tufo de uma miniorquídea, foi construído um ninho. Um lar.
Esse é um espaço frequentado por seres da Natureza. E o casal trabalhou duro por um dia, gravetos grandes pendurados, em seus bicos pequenos, foram sendo tecidos como se uma concha frágil se equilibrasse naquela bifurcação de galhos da jabuticabeira. Incansáveis, os dois, prepararam o ninho. Ela botou os ovos, não sei se dois ou três, e ficou ali, chocando, parecendo uma estátua. Dias e dias, talvez sete ou nove, e aquela mãe não saía, fazia sol ou fazia chuva, ela permanecia aquecendo seus ovinhos. O pai aparecia e, por algumas vezes, revezava com ela que voava, certamente para se alimentar. O pai mais arisco, a mãe mais acostumada com nossas olhadas pelo vidro da porta de acesso. Em todos esses dias, só hoje consegui capturar uma foto que tirei de longe quando os pais estavam trocando de turno.

Passarinho (Foto: Arquivo Pessoal)

Se eu trabalho com conteúdos psicológicos e corporais tão dolorosos e sofridos, em recipiente mental dos piores conteúdos de perversidade dos causadores dessas dores, aquela mãe e aquele pai que voam e que têm um sistema nervoso dos mais simples e rudimentares, me despertaram para uma indagação. Acompanho Crianças e Adolescentes, irresponsavelmente, agredidos por seus pais e mães.

Como pode ser que dois passarinhos que não foram à escola, que ninguém lhes disse como deveriam fazer quando chegasse o tempo da Responsabilidade Parental, e todo o processo fosse cumprido? Aquele pai passarinho não abandona a família porque nasceu um filho com microcefalia. Entre os humanos, cerca de 69% abandonaram o filho, a filha portador de microcefalia por sequela do Zika Vírus. Aquela mãe passarinha não abandona seu filhote porque a chuva está forte. Eles não estão submetidos a nenhum sistema judiciário, não há punição porque não há transgressão.

Talvez esteja parecendo que estou simplificando e vendo o comportamento de humanos como passíveis de um olhar comparativo com o comportamento de passarinhos. Afinal, somos animais superiores. Somos mesmo?
Para que serve todo esse aparato intelectual, resultante de milhões e milhões de sinapses? Para que serve o Conhecimento acumulado, de todas as Ciências, se o simples não faz parte do repertório de conduta social? Aliás, as Ciências estão sendo cada vez mais utilizadas para o “aprimoramento de precisões” de alvos, sempre os vulneráveis.

Ovos de passarinho (Foto: Arquivo Pessoal)

O casal de passarinhos nem sabe que está praticando uma lei da Natureza, recepcionando a vida. Não sabem que são pais e filhos, mas cumprem plenamente essas funções com a melhor qualidade. E nós, humanos, perdemos cada vez mais a capacidade de sentir Empatia pelo outro. Enquanto eles garantem a PROTEÇÃO de seus filhotes, sem necessitar de leis nem fiscais, estamos a assassinar os nossos com a estupidez de 19 guerras, que ocorrem no momento atual. E escolhemos a última da vez para fazer posições de torcidas de times que passam a usar a violência criticada de lá para aplicá-la aqui, uns contra os outros. São as Crianças as protagonistas do número de cadáveres.

Se a guerra, com toda a sua estupidez, ocupa o espaço midiático, a Paz, mesmo que pronunciada todo o tempo, parece que fica para depois. Um depois que carregará uma falha na população pelos assassinatos das Crianças. Mas, da mesma maneira que o convencimento dos riscos de danos ao planeta, causados, por exemplo, pelos plásticos nos mares, ou os desmatamentos e as queimadas, não são acreditados como responsáveis pelos fenômenos climáticos extremos, o ambiente intrafamiliar, muitas vezes, fica longe do ninho dos passarinhos do outro lado do vidro da porta do jardim.

(Foto: iStock)

O lar dos humanos, ao contrário do que a mídia propaga, pode ser o lugar mais perigoso para Mulheres e Crianças. Pelo Dossiê Mulher os números alarmantes de Feminicídio, tivemos, em 2022, no Estado do Rio de Janeiro, 125 mil mulheres que sofreram algum tipo de violência: 14 por hora! E, 82% dos agressores: companheiros ou ex-companheiros. Não é difícil entender que 17 Crianças assistiram ao Feminicídio da Mãe, entre as 11 Mulheres que foram vítimas desse crime. Não podemos esquecer que é comprovada a subnotificação desse crime doméstico e familiar.

E o crime é continuado quando surge o “mito”, totalmente infundado, de que um homem pode ser “um péssimo marido, mas um ótimo pai”. Isso cai no absurdo de imaginar que uma mesma pessoa pode ter dois pedaços antagônicos, considerando que a Criança é uma idiota e não sofre com as dores da mãe. Além do que, esse é um estímulo à identificação com o agressor que é a única saída para a Criança.

Talvez estejamos precisando voltar à simplicidade, e aprender com os passarinhos. Resgatar Princípios e Valores que já foram óbvios e hoje sumiram em meio a qualquer jogo de palavras que tentam justificar a barbárie.

Ana Maria Iencarelli

Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos.

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