Comportamento & Equilíbrio

Espacialidade e Temporalidade — Parte II

A aquisição da noção de espaço tem o facilitador do tangível, do concreto do entorno do bebê. O espaço é objetivável e objetivo, faz parte da realidade

Continuando. Na Parte I desse Artigo, Espacialidade e Temporalidade, nos debruçamos sobre quando e como adquirimos essas duas noções, espaço e tempo. O Espaço, pelo seu caráter objetivo, e concreto, é adquirido antes do Tempo. Trouxemos a compreensão do processo de aquisição que acontece a partir do Marco Zero, o próprio corpo. É em referência à essa invariável, que o parâmetro vai sinalizando os dados externos do Espaço que vão sendo captados pelas percepções sensoriais. Um momento importante do desenvolvimento motor é o sentar. Essa capacidade de sentar vai trazer para o bebê o controle visual do ambiente, ao sentar ao chão seu corpo se torna o eixo, iniciando, assim, a representação psíquica do Espaço. Girar o corpo em 360° permite apreender o entorno, partindo da invariável, o chão e a altura dos olhos, e aprender que as percepções espaciais são confiáveis, e se tornam, assim, conhecimento.

A aquisição da Noção de Espaço tem o facilitador do tangível, do concreto do entorno do bebê. O Espaço é objetivável e objetivo, faz parte da realidade. Mesmo que acompanhado de uma emoção, uma sensação que imprime algo por dentro, um sentimento, ele é captado pelos dados perceptivos, pelos sistemas sensoriais. Essa dimensão objetiva está em perfeita consonância com a fase do Desenvolvimento Cognitivo que durante toda a infância, de zero a 11 anos, é operado em raciocínio concreto. É pela experiência que a aprendizagem de todos os tipos, a cognitiva, a motora, a linguística, a afetiva, vai sendo adquirida e sedimentada. O processo é complexo e completo, executado com uma perfeição, experiência por experiência, na melhor performance possível.

(Foto: iStock)

Se o Espaço é físico, tangível, mensurável, o Tempo é subjetivo, intangível, com medidas distintas, quase invisíveis, para sua mensuração. Para uma criança apreender o conceito temporal é algo muito difícil, pois não há em seu corpo uma referência que ele possa usar para fazer sua pesquisa científica. O único dado que ela tem é a sua idade que decora a cada aniversário. Sem saber bem o que é ter quatro anos, ou seis anos. As primeiras idades são concretizadas nos dedinhos da mão. Mas é a primeira medida de Tempo que adquire.

O Tempo é mensurado por relógios e calendários. Eram. Hoje uma criança não conhece um relógio de ponteiros. Relógio de carrilhão que tem que receber “corda” todos os dias, é uma peça de museu ou de antiquário. Tive o privilégio de passar a infância convivendo com um relógio de carrilhão que ficava em cima do piano na sala. Enquanto fazia os deveres escolares, escutava as badaladas das horas certas e os acordes dos quartos de hora. Era um tipo para anunciar os 15 minutos passados, outro tipo para os 30 minutos, outro para os 45 minutos, para finalmente ser completo e com o número de badaladas correspondente à hora inteira.

À noite, depois do jantar via meu pai pegar uma chave especial que rodava nos buracos de aros dourados, que garantiam o trabalho do relógio e todos os acordes do dia seguinte. Era um ritual que se repetia todas as noites, como se o Tempo dependesse daquela tarefa. Confesso que não tenho ideia do quanto essa espécie de materialização do Tempo me auxiliou a aprender a saber das horas. Aliás, era matéria que fazia parte de provas nos primeiros anos de escola. Fazia parte da alfabetização. Aprender a ler as horas era caminhar no processo de aquisição da Noção de Tempo. O antes e o depois, o fui e o vou, não têm apoio no concreto. A Cognição avança, mas o equívoco de que tudo pode ser reversível, exemplo, abre aos pedaços um brinquedo que acabou de ganhar e depois quer que volte a ser o brinquedo ganhou, esse equívoco é desalojado por volta dos sete anos com a construção cognitiva da Noção de Irreversibilidade.

(Foto: iStock)

Essa Noção cognitiva surge com o início da Noção de Morte. A Morte é, por excelência, Irreversível. Ao despertar para essa essência, a criança incrementa a Temporalidade. Às vezes há uma facilitação da Irreversibilidade da Morte na construção da Noção de Tempo. Mas, há também momentos em que essa Noção de Irreversibilidade vai dificultar a aquisição da Noção da Temporalidade, quando, por exemplo, a ideia de Morte está associada a alguma figura afetiva importante. É frequente que a criança diga que a mãe dela só vai morrer com 100 anos, um número que demora muito a ser contado.

Lamentável que pessoas insistam em manipular o belo, travestindo em acusações cruéis contra a criança pintada como maldosa e ardilosa, criatura ruim que promove intrigas entre adultos, como a afirmação de que a criança mente. À criança falta o filtro social, ela sofre de “sincericismo”. Alimentadas pela Modernidade Líquida, com sua volatilidade e fluidez nas relações interpessoais, definição tão bem proposta por Bauman, sociólogo e filósofo, e surfando a onda da superficialidade e da desresponsabilização com o emprego de seitas interesseiras, desamparam a criança, apesar do aparato do corolário de Leis que contemplam a vulnerabilidade, condição que necessita de Proteção Integral.

É, verdadeiramente, encantador admirar e ESTUDAR os processos de desenvolvimento da Criança. Essa Grande Orquestra afinada em todos os instrumentos, das milhões de sinapses, as mais simples e as mais complexas, à repetição científica de gestos e movimentos para sedimentar uma nova aquisição motora ou cognitiva, a “Música” executada é linda.

Continuaremos no próximo artigo pensando a Espacialidade e a Temporalidade no Desenvolvimento das Crianças de hoje à luz das ideias de Bauman sobre a Modernidade Líquida, a telinha do celular nas mãozinhas dos pequenos. Os efeitos, os prejuízos.

Ana Maria Iencarelli

Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos.

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