Esportes

Conivência com o racismo, uma regra não escrita do futebol

Marega abandonou jogo pelo Porto após sofrer ofensas racistas, mas a justa reação de jogadores negros ainda é tratada como descontrole emocional

Atacante francês de origem malinesa, Moussa Marega foi o artilheiro do Porto na última Champions League. Neste domingo, ele voltou a reforçar seu papel como principal jogador do time. Marcou o gol do triunfo sobre o Vitória de Guimarães, fora de casa, mantendo sua equipe a um ponto do líder Benfica na disputa pelo Campeonato Português. Após a cavadinha que encobriu o goleiro Douglas, Marega afrontou a torcida do Vitória, onde jogou há três temporadas, que, desde o aquecimento da partida, o insultava com provocações e cânticos racistas. O que se seguiu à celebração em forma de protesto foi um constrangimento típico do futebol, habituado a relativizar o racismo em nome do espetáculo.
Torcedores rivais atiraram objetos em direção ao jogador, que batia com uma das mãos sobre o braço para demonstrar o orgulho da cor de sua pele, de sua raça. Apesar da gravidade dos insultos, o árbitro Luis Godinho advertiu Marega com cartão amarelo por provocar a torcida que o atacava. Em novembro, o brasileiro Taison já havia sofrido algo semelhante depois de reagir às agressões preconceituosas de torcedores do Dínamo de Kiev, na Ucrânia. Nem assim, com um caso tão recente e de grande repercussão na Europa, a arbitragem portuguesa foi capaz de interpretar corretamente a revolta de Marega diante de um contexto de discriminação racial no estádio.
Irritado com as incessantes ofensas das arquibancadas, o atacante decidiu abandonar a partida na metade do segundo tempo. Prontamente, tanto seus companheiros de time, como o brasileiro Otávio, quanto jogadores adversários, como o compatriota Falaye Sacko, o cercaram na tentativa de demovê-lo da ideia. Embora tivessem a intenção de evitar mais punições ao colega, que já tinha sido amarelado pelo juiz, o gesto coletivo de frear impulsos sob exposição à humilhação pública reforça o estigma de que a vítima que se revolta contra o racismo está destemperada, fora de si. Tratar a justa reação de um atleta negro como descontrole emocional, ainda que esta não seja intenção, contribui apenas para encorajar os racistas.
Marega evitou apontar o dedo para seus companheiros de profissão, mas questionou a atitude da arbitragem de puni-lo por revidar as agressões que sofreu na partida. “Gostaria apenas de dizer a esses idiotas que vêm ao estádio fazer gritos racistas: vá se f… E também agradeço ao árbitro por não me defender e por ter me dado um cartão amarelo porque defendo minha cor da pele. Espero nunca mais encontrá-lo em um campo de futebol! Você é uma vergonha!”, publicou em suas redes sociais. A diretoria do Vitória de Guimarães prometeu apurar a conduta dos torcedores. No entanto, o presidente Miguel Pinto Lisboa preferiu culpar a vítima pelo racismo de parte de sua torcida. “Não percebi os insultos, mas sim uma atitude provocatória do atleta. Ele tem esse perfil”, declarou o cartola.
É um expediente padrão dos dirigentes desqualificar o relato das vítimas e direcionar responsabilidades para blindar os racistas que lhes convêm. Por isso, ao se deparar com atos de discriminação racial, atletas precisam urgentemente rever seus protocolos de solidariedade. O sistema do futebol somente adotará uma abordagem rigorosa com agressores a partir do momento que tiver sua engrenagem financeira afetada, o que demanda coragem e posicionamento antirracistas dos atletas, sobretudo dos brancos, a fim de que atos discriminatórios não sejam mais tolerados. Um time realmente solidário acompanharia Marega rumo aos vestiários e se recusaria a jogar enquanto não cessassem os gritos preconceituosos, atitude que deveria ser respaldada pela equipe rival.

Marega é contido por colegas de time depois de ser insultado pela torcida rival(Foto: AP)

Não se trataria de um protesto inédito. Em dezembro, um mês depois do episódio racista envolvendo Taison, jogadores do Albacete abandonaram a partida contra o Rayo Vallecano, pela segunda divisão espanhola, em solidariedade ao ucraniano Roman Zozulya, que era chamado de “nazista” pela torcida rival devido à simpatia do atacante por movimentos ultranacionalistas em seu país. Apesar dos inúmeros casos de manifestações racistas contra jogadores negros na Europa, o precedente de boicotar um jogo em andamento por causa do mau comportamento de torcedores, devidamente referendado pela arbitragem, só foi aberto em apoio a um jogador identificado com o neonazismo.
Faltam redes de suporte a atletas perseguidos pelos racistas. Assim como Marega, Taison foi repreendido pela arbitragem por responder a insultos em campo. Mario Balotelli, maior alvo do racismo estrutural acobertado pelo futebol italiano, é criticado pelos dirigentes por não aceitar calado a discriminação de torcidas rivais. O jovem Moise Kean escutou de Bonucci, seu companheiro de time, que tinha “50% de culpa” depois de sofrer xingamentos racistas ao comemorar um gol. O brasileiro Serginho, chamado de “macaco” em partida pelo Campeonato Boliviano, viu um comentarista de TV dizer que “jogadores sabem onde estão se metendo” ao escolher a carreira nos gramados, como se torcedores tivessem licença para propagar o racismo dentro dos estádios.
O futebol, infelizmente, não reproduz nada de novo. Do Brasil a Portugal, a convivência pacífica com o racismo tem sido assimilada como norma ao longo de décadas. E os sinais estão por toda parte. Dos discursos políticos ao Big Brother. Das marchinhas de Carnaval aos cânticos de torcida. O futebol, porém, ao contrário de muitos espaços, impulsiona negros a posições de protagonismo. Por consequência, os expõe à fúria incontida dos racistas. Cobra-se muito de Pelé, o negro mais bem-sucedido da história da modalidade, pela falta de engajamento em movimentos antirracistas. Mas não existe cobrança similar sobre figuras como Messi e Cristiano Ronaldo, que, da mesma maneira, poderiam emprestar sua voz para respaldar a luta de vários colegas negros por respeito e dignidade.
Enfrentar o racismo é uma missão social, coletiva e civilizatória, não um fardo que apenas as pessoas e personalidades negras devem carregar. Nesse sentido, é fundamental que a ação seja transformadora, especialmente em uma plataforma de longo alcance como o esporte. Passou da hora de os verdadeiros protagonistas do espetáculo saírem das frases feitas, das campanhas batidas de “todos somos iguais” ou das mensagens de apoio no Instagram e partirem para atitudes de maior impacto, como a louvável postura de Marega. O show não pode continuar à sombra dos racistas. É bom lembrar que, além deles, os cúmplices também envergonham o futebol.

Fonte: El País Brasil

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