Bem-estar

A criança e o coronavírus – Parte I

O confinamento exacerba os medos e, com eles, as necessidades de poderes para banir a sensação de fragilidade trazida pelos medos. É o medo que patrocina a necessidade de poder

Hoje iria escrever sobre o quarto vetor do desenvolvimento infantil, o desenvolvimento afetivo, aquele que permeia a todos os outros vetores. Mas, desde a semana passada, sofro este conflito entre dois temas. Ocorre que o isolamento social, o confinamento, o ficar em casa, acompanhado de um clima de preocupação e cuidado com a higienização rigorosa de mãos, e a proibição do contato corporal entre as pessoas, tornou-se a prioridade. Coronavírus. Nós, adultos, estudados, temos dificuldade de assimilar a periculosidade de um animal invisível a olho nu e mesmo em microscópio comum. Não faz muito sentido admitir que esta nano partícula é capaz de derrubar um ser humano adulto e, até matá-lo. E a criança? Como fazê-la entender este acréscimo de proibições, este monte de restrições de conquistas que já tinha adquirido?
Ela está cerceada em sua motricidade de maneira muito intensa. Sem escola. Não pode sair de casa, nem pode receber nenhuma outra criança em casa. Como continuar a treinar suas corridas, seus pulos, suas acrobacias mais simples? Como melhorar o chute a gol ou o passinho novo na coreografia? Meninas e meninos aprimoram a cada dia suas competências motoras, as de grande espectro e as de motricidade fina.
A linguagem nesta situação inusitada do retiro social pode sofrer também uma redução de expressão, porquanto fica limitada à família nuclear, sem a aeração natural da circulação pelos outros grupos linguísticos da convivência social da criança. Além disso, o momento atual é monotemático, coronavírus, que anuncia perigos graves. Um vírus com muito poder.
Já vimos até crianças, bem pequenas, transmitindo recados para os adultos, “fiquem em casa”, umas gracinhas! O interessante é que o desenvolvimento cognitivo não possibilita a compreensão da situação como um todo. A parte que está sendo entendida pelas crianças da fase da primeira infância, refere-se à alguma imagem que possa ser colada a uma vivência concreta que traga sentido à estranheza da situação. E, quando uma criança não compreende as palavras, ela faz a compreensão pelas emoções que transitam entre os adultos. Portanto, o cenário exige da criança um comportamento acima de sua idade.

A violência física e a sexual. Estes dois tipos de violência são, por excelência, as modalidades que interferem no desenvolvimento, deixando uma cascata de efeitos moleculares e neurobiológicos, que alteram, de modo irreversível, o desenvolvimento neural


Isto, se bem dosado pelos adultos responsáveis, pode ser aproveitado como um estímulo para seu desenvolvimento e amadurecimento psicológico, mesmo que um pouco a mais do quantum que ela está acostumada. O problema é, exatamente, a comunicação pelas emoções dos adultos. O confinamento exacerba os medos e, com eles, as necessidades de poderes para banir a sensação de fragilidade trazida pelos medos. É o medo que patrocina a necessidade de poder.
Já temos a informação de um aumento em torno de mais de 50% de episódios de violência doméstica. A proximidade física e a ausência de “rotas de fuga”, ou de pessoas alternativas, colocam as crianças, intensamente, dentro da violência, mesmo que esta não esteja atingindo diretamente a crianças. A violência psicológica contra a mãe fere também a criança. Mais ainda, se a violência contra a mãe for física, a criança testemunha será atingida. Por vezes, a violência física é dirigida à crianças porque ela representa o foco mais eficaz para fornecer esta sensação de poder absoluto. Há que se considerar que a exposição ao Impacto de Extremo Estresse, conceito que abrange duas formas de violência contra a criança, a violência física e a sexual. Estes dois tipos de violência são, por excelência, as modalidades que interferem no desenvolvimento, deixando uma cascata de efeitos moleculares e neurobiológicos, que alteram, de modo irreversível, o desenvolvimento neural.
O cérebro humano no nascimento traz uma imaturidade que vai se completando nos primeiro anos de vida. Esta exposição ao Impacto de Extremo Estresse, nesta condição de confinamento, o que agrava ainda mais a marca da impotência, tem sido pesquisada por diversas universidades dos EUS, do Canadá, da Inglaterra, e outros, e apontam para interferências irreversíveis de estruturas e funções cerebrais. As atrofias de estruturas cerebrais acontecem por estar o cérebro em formação. Também as Epilepsias de Lobo Temporal, os distúrbios de bordelines, depressões, respostas de irritabilidade, ideias de suicídio, são quadros patológicos correlacionados nestas pesquisas com a violência física sofrida.
Portanto, enquanto nos preocuparmos com questões do depois do isolamento, as crianças, assim como as mulheres, estão sofrendo neste momento mais violência do que já sofrem dentro da reinante Cultura de Opressão e Poder.

Denuncie a violência doméstica (Foto: Reprodução Facebook)
Ana Maria Iencarelli

Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos.

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