Bem-estar

Desenvolvimento Afetivo, como nos tornamos humanos – Parte I

O colo materno é expressão de afeto.
São muitos os autores que construíram teses e teorias sobre o desenvolvimento afetivo

Como já falamos anteriormente, nos textos sobre os outros vetores do desenvolvimento infantil, o bebê humano nasce muito incompleto e incapacitado para a sobrevivência. Ele necessita de um adulto preferencial para ampará-lo nestas necessidades. Digo preferencial porque, como incapaz para seu próprio sustento alimentar, ele precisa da relação afetiva com esta pessoa que vai dispender os cuidados que lhe garantam a sobrevivência. Esta preferência recai sobre a mãe. Pela simples razão do reconhecimento, da familiaridade do ritmo de seu batimento cardíaco, de sua voz, que é ouvida pelo feto mesmo que com distorção pelo ambiente aquático, pelas suas respostas emocionais. Portanto, o colo materno vai bem além do alojamento físico. O colo materno é expressão de afeto.
São muitos os autores que construíram teses e teorias sobre o desenvolvimento afetivo. Para os psicanalistas, um apaixonante tema, que continua e continuará inesgotável. Como compreender este processo de aquisição do afeto? Ele é constitutivo da “persona”, a identidade psicológica de cada um, e não é evidente como ele é operacionalizado neste processo de aquisição. Um afeto não se ensina, não se faz treinamento, não se traduz em palavras, apesar de terem nomes como amor, raiva, inveja, admiração, gratidão, por exemplo. Mas é comum que, em momentos de muita emoção, se escute aquela frase “eu não tenho palavras para dizer o que estou sentindo”. Sentimos o afeto. Vivemos por dentro o afeto. E, palavras e emoções, são a tentativa de aproximação do que está sendo sentido.
Diante da diversidade de teorias, escolhemos um autor, René Spitz, que nos oferece uma compreensão muito fácil de acompanharmos. Ele fala de três momentos que chama de organizadores, quais sejam: o aparecimento do primeiro sorriso, a angústia do oitavo mês e o “Não”.
Faz-se necessário considerar que nós humanos nascemos com fome de dois alimentos: o alimento nutriente e o alimento afeto. O bebê humano precisa de alguns anos para adquirir a autonomia suficiente para se alimentar sozinho e, mesmo assim, desde que lhe seja fornecida. A sua sobrevivência, portanto, depende de alguém que lhe ofereça este alimento, de preferência o leite materno no início. Mas, se olharmos um bebê mamando no seio da mãe, constatamos que, além do alimento-leite, ele é alimentado pelo olhar o rosto da mãe, pelo ser sustentado e aconchegado por ela. Esta cena a dois, esta troca de olhares, este asseguramento recíproco, faz parte do alicerce afetivo do bebê. As necessidades de leite e afeto são similares. Temos situações que exemplificam esta necessidade deste duplo alimento nas histórias de crianças que foram criadas por animais. A história dos dois irmãos que foram criados por uma loba, numa alcateia, nos traz a dimensão da relação afetiva como elemento de sobrevivência. Estas duas crianças tinham sobrevivido a um ataque à aldeia dos pais, onde todos morreram, e os lobos vieram para se alimentar. Mas uma mãe loba entre eles os adotou. Quando estavam com seis e dez anos, aproximadamente, foram encontrados por um grupo de expedição, que as levaram para a cidade. Eles andavam como os lobos, engatinhando, uivavam como lobos, não tinham adquirido a linguagem, nem a motricidade, e sua cognição se resumia a solucionar problemas de sobrevivência do grupo dos lobos. As crianças sofreram muito com esta retirada de seu ambiente afetivo.

O colo materno é expressão de afeto (Foto: iStockphoto)

A mais nova se recusava, totalmente, a qualquer contato humano. Uivou por alguns dias e morreu de inanição e exaustão. A mais velha, foi aceitando, gradualmente, o contato, foi adquirindo uma postura mais ereta do corpo e, aos poucos, uma linguagem muito rudimentar. Sobreviveu. Mas foi uma adulta reclusa, pouco sociável, e morreu na juventude ainda. Esta experiência que foi registrada por humanos estudados, nos mostra a dimensão da importância da relação afetiva para o ser humano. Havia sido transferido, para a mãe loba adotiva, o afeto que tinham pela mãe que perderam. E, a partir daí, o processo das identificações transcorreu com um conforto afetivo que não imaginamos. O fato da criança mais nova não ter resistido à separação de sua mãe loba, parece-me que é claro à luz do desenvolvimento cognitivo também. Ela tinha maior dependência da mãe por ter menos recursos de percepção pela pouca idade, enquanto a mais velha já pôde contar com uma possibilidade maior de compreensão cognitiva. Além disso, temos que considerar que esta foi a segunda separação dos cuidados maternos que sofreram. Já haviam perdido a mãe biológica. Outro autor nos mostra que a separação da mãe, de seus cuidados, tem relação com o aparecimento de doenças mentais na juventude e na idade adulta. (Bowlby). E Spitz definiu com “Hospitalismo” o quadro que o afastamento da mãe, sem substituição do afeto de qualidade, pode levar a criança à morte.
O afeto é, portanto, essencial para o desenvolvimento humano. Mas, não vamos confundir afeto com grudação. O Afeto é responsável e consequente. É ele que nos torna humanos, capazes de sentir, e de sentir pelo outro. É por ele que conseguimos viver em grupo, que conseguimos refletir, ter um pensamento humanizado, tomar decisões que consideram muitas variáveis. Ele perpassa todos os vetores do desenvolvimento. É o afeto materno, no início, que nos encoraja e que também nos mostra a cautela, quando queremos arriscar uma nova proeza motora, ou quando tentamos incluir uma nova palavra no vocabulário, ou quando estamos tentando raciocinar com pouca amplitude pela restrição ainda em andamento da cognição. O afeto sustenta a vida da criança.

No próximo texto, falaremos dos momentos organizadores propostos por Spitz.

Ana Maria Iencarelli

Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos.

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