Cortella: “Uma democracia não é ausência de ordem, é ausência de opressão”

Em entrevista exclusiva, o filósofo e professor Mário Sérgio Cortella fala sobre diversidade e preconceito, temas de seu novo livro
No livro A Diversidade — aprendendo a ser humano (Littera Books), com lançamento previsto o próximo dia 6 (sábado), o professor e filósofo Mário Sérgio Cortella se debruçou sobre um assunto cada vez mais urgente. “Nosso grande adversário no momento é o vírus, mas os efeitos da presença pandêmica farão com que nós tenhamos de nos cuidar coletivamente quando essa pandemia estiver sob controle”, disse Cortella em entrevista à Galileu, poucos dias antes dos protestos nos Estados Unidos contra a violência policial que culminou na morte de George Floyd, um homem negro, em Minneapolis.
O volume seria a 46ª obra de Cortella, caso ele o considerasse totalmente inédito. Trata-se, na verdade, da reorganização de uma obra publicada há cinco anos, mas voltada para o universo escolar. “Imaginamos que era preciso reinventar e atualizar [a publicação anterior] para lidar com a temática da diversidade em geral”, explica. Um dos pensadores brasileiros mais respeitados da atualidade, na entrevista a seguir ele fala sobre os prejuízos que o preconceito traz para uma democracia e as consequências do pensamento individualista em tempos de pandemia.
Por que, mesmo o Brasil sendo um dos países mais diversos do mundo, muitos brasileiros têm dificuldade de abraçar essa diversidade ou encará-la como patrimônio?
A ideia de uma diversidade que é recusada — muitas vezes ofendida e até relegada a um plano secundário, quando é, na verdade, um patrimônio — não é algo exclusivo da formação brasileira. No entanto, é estranha, pois somos uma sociedade composta não só por uma pluralidade étnica, mas também a mescla que essa pluralidade trouxe no campo da música, da literatura, da gastronomia, das religiões, dos valores de convivência, dos idiomas. Temos uma multiplicidade de situações que em princípio nos colocariam como sendo grandes protetores disso. Ademais, somos proprietários da maior reserva de biodiversidade que o planeta ainda carrega. Se a biodiversidade é para nós um patrimônio, a antropodiversidade, a diversidade humana, deveria sê-lo também de um modo mais intenso.
O nosso modelo de colonização tem a ver com essa recusa à diversidade?
Nossa formação histórica se deu em larga escala com um processo de exclusão. Isto é, com o não reconhecimento daquele que era diferente como tendo a mesma dignidade, a mesma importância. Tem impacto nisso o fato de que o europeu, ao chegar aqui e encontrar outras populações, passou a desqualificá-las para poder dominar. E também o fato de uma sociedade que viveu durante alguns séculos o processo escravagista, com um subordinação, uma submissão e uma forma de propriedade sobre outras pessoas. Em uma nação muito empobrecida em termos de divisão social, embora extremamente enriquecida no campo da economia, a discriminação em relação à diferença apareceu como uma forma de autoafirmação de uma parcela da sociedade.
O livro vem em um momento de governo no qual a diversidade não é prioridade. Como esses posicionamentos prejudicam o País?
O país não precisa ter um pensamento exclusivo, unitário. Ele tem que ter um pensamento consensual, que é o respeito à diversidade. O respeito é diferente de aceitação, pois posso compreender, mas não obrigatoriamente aceitar. Isso significa que uma sociedade que deseja atender não só a constituição, mas qualquer princípio de convivência humana, tem que ter a dignidade coletiva, o respeito recíproco, o acolhimento da diversidade como sendo algo da rotina. Todas as vezes que essa rotina é abalada, temos uma ruptura destes princípios. Não é estranho que pessoas não pensem do mesmo modo. É algo que a gente pode até não gostar, e eu especialmente não aprecio quando encontro pessoas que são avessas à percepção da diversidade, mas não acho que seja incompreensível. No entanto, o fato de eu achar que não é incompreensível não significa que seja justificável.
A preservação da diversidade e da dignidade de qualquer pessoa, de qualquer idade e em qualquer lugar do nosso país, é um preceito constitucional. Por isso, insisto, eu posso não gostar, como não gosto, do modo como algumas pessoas são, mas não recuso que elas possam ser desse modo, e nem acho que elas precisam ser excluídas da vida por conta disso. Quando alguém pratica um crime, precisa ser punido, mas ser diferente sem que isso produza dano a qualquer outra pessoa, de modo algum é razão para exclusão.
Quando a adesão automática a uma ideia, ou o “preconceito a favor”, se torna extremismo? E quais os riscos disso para uma sociedade democrática?
Todas as vezes que tenho uma adesão automática ou uma rejeição automática, dificulto o raciocínio crítico, uma ação mais meditada, uma argumentação consistente. Quando movidas por um automatismo, a recusa ou a adesão prejudicam a objetividade do raciocínio e a formação de argumentação que seja mais vigorosa. Isso acaba reduzindo até a eficácia e o alcance de uma ação. Em uma sociedade que a democracia pressupõe a possibilidade de partilha do poder seja por outorga, como é no caso do voto, seja pelo exercício da cidadania ativa no dia a dia, a adesão ou a recusa automática a algo ou alguém, apenas porque coincide com aquilo que eu já aprecio o tempo todo, faz com que haja uma fragilização da estrutura de sustentação, porque a base ficará abalada sem uma formação mais sólida. E aí há um risco. A renovação, a recriação e a revitalização vêm quando somos capazes de colocar também aquilo que pensamos sob o espírito analítico, utilizando critérios que não sejam sempre idênticos ao modo como estamos habituados.
O senhor tem muito cuidado em explicar a origem das palavras e como uma frase mal construída pode mascarar o preconceito, às vezes até sem intenção. Qual o papel da linguagem para a construção e desconstrução do preconceito?
A linguagem não é neutra, de alguma maneira traduz o modo como a gente percebe a realidade. O uso do idioma e o modo como as palavras vêm à tona permitem que a gente identifique também a carga que o preconceito traz dentro dele. Falei antes da formação brasileira: é muito usual que quem veio em 1500 para a colonização e lá na Europa vivia em cidades chamasse a si mesmo de cidadão. E aqueles que viviam fora das cidades, os habitantes originais deste território, que viviam naquilo que é a selva, eram chamados de selvagens. Até hoje, a percepção de selvagem não é necessariamente a de alguém que vive na mata, mas de alguém que é bruto, agressivo, violento. O mesmo vale para outros termos que usamos, e a linguagem tem que ser manejada com uma atenção a isso.
A linguagem precisa estar em constante evolução para se adaptar à realidade.
Mas isso não significa negar a história das palavras que têm história. Não vamos anular a obra feita por Monteiro Lobato, porque ele coloca Sinhá Anastácia como alguém em uma atividade de serviço doméstico. Não vamos extinguir aquilo que escreveu Mark Twain porque ele menciona alguma situações nas quais o contexto dele, no século 19, ainda trazia a postura dos afrodescendentes como de presença inferior. Não vamos pegar a obra de Aristóteles, especialmente a política, e descartá-la porque ele faz uma menção de secundarização do mundo feminino. Mas não podemos deixar de olhar para isso. Não posso deixar de ler Monteiro Lobato, Mark Twain, Aristóteles, mas não posso lê-los sem ter uma percepção de que aquilo faz sentido em um contexto que agora seria inaplicável. Não posso dizer que Aristóteles é machista, porque esse é um conceito do século 20. Dizer que Aristóteles lá no século 4 a.C. é machista significa atrelar um conceito de agora ao que aconteceu em outro tempo. Mas não posso deixar de imaginar e formar com as pessoas uma reflexão sobre isso, para que se entenda que aquilo que foi, foi quando foi, mas não pode mais ser daquele mesmo modo.
De que maneira diferenciar o que é natural, normal e comum ajuda a pensar sobre o preconceito?
Ao entender algo, olhamos se aquilo faz parte da natureza, da norma social ou se tem uma frequência maior, e por isso é comum por frequência, não por simplicidade ou banalidade. Por isso, quando se olha algo, especialmente no campo do preconceito, é preciso ver se estou olhando algo como natural, normal ou comum. Por exemplo, é natural que mulheres possam dar à luz. Já foi considerado normal, da norma social. Ou seja, uma mulher que não o fizesse seria olhada de modo lateral. Não é comum no sentido histórico. Hoje, embora seja natural, não é algo obrigatório, e nem é mais normal, não é algo que uma mulher seja obrigada a fazer para não ser colocada como inferior. É comum que o faça. Quando a gente vai transpondo esses três patamares e usando esse crivo, se algo é olhado como natural, normal ou comum, há uma compreensão da origem do próprio preconceito. Eles servem como uma peneira na qual se consiga passar essa distinção entre o que é natural, normal e comum, porque quando algo é natural de fato, é muito difícil mudar. Quando é normal, a gente altera a norma. E quando é comum, a gente muda a frequência.
Desde as últimas eleições, vimos ascender a polarização política e debates que se resumem ao “esse é o meu ponto de vista, você tem o seu”. Por que esse discurso é perigoso e limitador da diversidade?
O pensamento exclusivista, que faz com que não haja possibilidade de que um argumento diverso possa ser considerado, tem dois efeitos. O primeiro é a impossibilidade do diálogo, e portanto da convivência pacífica. O segundo é que a pessoa fica menos inteligente. Se eu, Cortella, sou incapaz de acolher pontos que não coincidem com o meu e considero que o meu modo de pensar é o melhor e o único certo, essa crença quase dogmática faz com que eu não só aja de modo equivocado, como queima as pontes de convivência e de estruturação consensual. Uma democracia não é ausência de ordem, é ausência de opressão. A ordem se constrói quando somos capazes de fazer com que os conflitos inerentes à convivência não se tornem confrontos, rupturas, esfacelamento do tecido social. A exacerbação, o hiperdimensionamento das diferenças como sendo inconciliáveis não leva a nenhum resultado. Apenas nos faz ficar em estado contínuo de combate, de procura de confronto, e não há ninguém que tenha lucro com essa ideia. Não há ninguém que tenha ganho quando nós vivemos em estado de beligerância; quando nós, estando de um lado do rio, ficamos gritando com as pessoas do outro lado do rio. Aliás, daí vem a palavra rival. Parece que quem está de um lado não pode fazer ponte com quem está do outro lado. E não é verdade. Isso significa que nós não temos que anular as diferenças para viver em paz. Temos é de colocá-las como maneira de convivência que não deixe, de maneira alguma, de admitir que nós não somos idênticos no modo de ser e agir, mas idênticos na igualdade e dignidade.
A frase de Saint-Exupéry que conclui o livro, “cada pessoa é responsável por todas”, parece também cair como uma luva para a pandemia pela qual passamos.
Pois é, esse livro, como falei, foi elaborado há cinco anos. Quando foi refeito, atualizado, essa frase aparece por várias razões, mas uma delas é porque o término já se deu quando a pandemia estava iniciando. Sem dúvida essa frase tem uma aplicabilidade cada vez mais forte, afinal, como o livro mesmo levanta e a pandemia mostra, não dá para ser cada um por si e Deus por todos. Ou é um por todos e todos por um, ou não haverá alternativa. Porque nosso grande adversário no momento é o vírus, mas os efeitos da presença pandêmica farão com que nós tenhamos de nos cuidar coletivamente quando essa pandemia estiver sob controle. Do contrário, não haverá tecido social que resista, não haverá possibilidade harmônica, vamos vivenciar por um bom tempo uma crise econômica que terá de nos levar a cuidar uns dos outros para que aquilo que é o efeito posterior da pandemia não seja ainda mais brutal do que a própria pandemia.

O individualismo ocidental e falta de apreço pelo outro podem ter contribuído para o alastramento do vírus?
É uma das hipóteses, uma das possibilidade. Nossa percepção da individualidade, muito marcante nas sociedades ocidentais é exatamente a valorização do indivíduo e não a dispersão dele em meio ao coletivo, e isso é uma das heranças positivas do liberalismo econômico, político e filosófico que surgiu a partir do século 17. Mas ela acaba muitas vezes resvalando para o individualismo, e não para a individualidade. E essa lógica de que eu sou eu e a minha vida me pertence, e ninguém em mim manda, que é um valor importante quando a gente imagina a constituição da autonomia de cada indivíduo, nos momentos mais graves pode ser uma desvantagem se não se dá um passo mais adiante para entender que a individualidade só tem capacidade de exercício se eu continuar vivo ou viva. Acabamos valorizando muito a liberdade de cada um, mas essa liberdade em situações como estamos vivendo acaba colidindo com a necessidade coletiva. Daí o desejo autoritário de algumas pessoas que acham que não tem jeito, que o negócio é deixar mesmo que o vírus faça o seu serviço de extinção, ou um outro tipo de autoritarismo que é o do indivíduo que se recusa a tomar as medidas que protegem a comunidade na qual ele está colocado quando pode fazê-lo.
O senhor já disse em outras entrevistas que não acredita que sairemos da pandemia transformados. Estaríamos perdendo uma chance de refletir e discutir assuntos geralmente deixados de lado, como o preconceito?
Não acho que vamos sair todos e todas transformados, acho que muita gente o fará. Muitas pessoas alterarão o modo de pensar, de fazer, de agir, de possuir, de organizar patrimônio. Todo tipo de impacto e de trauma mexe com algumas pessoas. O que tenho dito é que não acredito que isso trará uma conversão na humanidade. Isto é, que passado esse momento estaremos convertidos ao abraço, ao afeto. Nós em vários momentos da história, especialmente no século 20, que é o mais próximo a nós, desperdiçamos, sim, várias ocasiões de nos reinventarmos e continuamos na mesma trilha. Mark Twain tem uma frase que aprecio, que diz que não adianta tentar atirar os hábitos pela janela, é preciso empurrá-los pela escada abaixo degrau por degrau. Não nos livramos dos velhos hábitos com tanta facilidade. Por isso, não é uma postura catastrófica em relação à pós-pandemia, mas também não é triunfalista de que surgirá ali um novo ser humano. A finalidade deste livro é que a gente pense um pouco naquilo que precisa e pode fazer. Porque se a gente precisa e pode fazer, se a gente tiver a intenção, faz.

Fonte: Revista Galileu