Quando começamos a pensar sobre a morte? — Parte I
Para a criança, o fechar os olhos é equivalente ao morrer e, por isso, ela fica tão agoniada quando encontra a mãe de olhos fechados, ou dormindo e, imediatamente, abrem os olhos da mãe, puxando as pálpebras
No momento, a todo momento. Não é o começo deste pensar, é um continuar ininterrupto deste pensar. No contexto atual, em meio a uma pandemia avassaladora, a morte é pensada por vários ângulos. Todos os dias, tomamos conhecimento de quantos ela venceu, seja pela mídia, seja domesticamente, quando os números passam a ter rostos. Foi a vovó, foi o tio, foi o pai do amigo, ela vence pela falta de leito, ou pela voracidade em vencer no leito mais completo. Dramas e tragédias que nos tocam a quase todos.
Passamos por um tempo antes inimaginável. Há um inimigo mortal, invisível lá fora de nossas casas que pode entrar até por mais controlado e desinfetado que seja o espaço para dentro da porta. Comportamentos estranhos, até então, são adotados, mas não há segurança de controle do inimigo invisível. As crianças imitam. Passam a lavar as mãos, usar máscaras, mas não sabem medir um metro e meio de distância, e não querem. Elas têm necessidade do contato físico, do aconchego. Não podemos nos esquecer que o corpo delas é usado como medida para muitas coisas, muitos conhecimentos que buscam.
O seu corpo é o parâmetro que a orienta nas comparações e localizações de estímulos externos. As relações interpessoais novas são guiadas pelo tamanho do corpo, ela não vai provocar a raiva de um “grande” até ter a confiança da relação com ele. O estranho, desde que esteja dentro desta medida de tamanho, não lhe assusta. Ou seja, ela é capaz de brincar com uma criança que nunca viu, mas não se aproxima de pronto de alguém muito maior e, por isso, a sedução do “doce” é tão recomendada pelas mães. Só com sedução um adulto consegue a aproximação rápida de uma criança. O estranho “grande” representa uma ameaça à sua integridade, mesmo que, para ela, não haja uma noção clara deste perigo.
Neste nosso tempo, a criança está muito exposta à ideia de morte. Excessivamente. E este excesso não tem respeitado sua fase de desenvolvimento. Apesar dos cuidados de muitas famílias para evitar sobrecargas para as crianças, é impossível que elas não se confrontem com o morrer e a morte. A sensação de um morrer da escola, dos amigos, dos prazeres dos passeios e da praia, coloca a criança em frente à ideia de morte.
Mas a noção de morte faz parte de seu desenvolvimento cognitivo e depende dele. É preciso que ela tenha adquirido a noção de irreversibilidade do objeto. E isto ocorre por volta dos sete anos. Antes desta idade, a criança não tem a condição de pensar a morte. Uma criança pequena se equivoca quanto à conservação da matéria, que precede a noção de irreversibilidade. Esta aquisição cognitiva mudará sua ingenuidade de pensar que tudo que quebra, conserta, ou, tudo que para, volta a funcionar. Enfim, que tudo tem jeito. O experimento sobre a aquisição da noção de conservação de volume e de peso evidencia esta ainda deficiência do raciocínio da criança que só consegue lidar com uma das duas variáveis, a altura. Em frente à criança, o pesquisador lhe mostra dois recipientes de vidro: um largo e baixo, o outro fino e alto. Ele derrama uma quantidade de pérolas dentro do recipiente largo e baixo. Depois, ele derrama esta quantidade de pérolas contidas no recipiente largo e baixo no recipiente estreito e alto. Isto feito na frente da criança. Então lhe pergunta onde tem mais pérolas, ao que a criança responde que é no recipiente estreito e alto. A criança ainda não consegue raciocinar com duas variáveis ao mesmo tempo, ou seja, altura x largura, horizontal x vertical, mesmo que ela tenha acompanhado a transferência das pérolas sem nenhum acréscimo de um recipiente para o outro. E a altura, ainda pelo parâmetro da altura de seu corpo, a variável do vetor vertical, será o único dado a ser considerado por ela.
Portanto, quando expomos uma criança à saturação precoce, como é agora a questão da morte, de um dado que ela ainda não adquiriu o recurso necessário para elaborá-lo, estamos forçando sua mente a dar uma resolução precária que pode vir a lhe custar, caso isso seja antecipado de maneira traumática. E isto acontecerá com todos os excessos precoces que por ventura lhe sejam impostos. No campo afetivo, no campo motor, no campo sexual, no campo intelectual, as exigências acima de sua capacidade de desenvolvimento, custarão caro.
Para a criança, o fechar os olhos é equivalente ao morrer e, por isso, ela fica tão agoniada quando encontra a mãe de olhos fechados, ou dormindo e, imediatamente, abrem os olhos da mãe, puxando as pálpebras. Abrir os olhos é “viver de novo”. É o olho fechado que angustia a criança pequena, como se esta fosse a representação do morrer.
Há uma equivalência desta representação com um costume de um povo nativo brasileiro. Os indígenas pintam dois círculos abaixo, no ângulo do rosto que representa os olhos abertos. Assim, se a morte vier buscar durante a noite, enquanto dorme, a morte será enganada porque verá o “olho aberto” o círculo pintado.
Pelo mistério que envolve esta que é a única verdade humana inabalável, ao mesmo tempo em que nunca é vista pelo próprio mortal, a morte está em tentativas figurativas sempre em tom de maldade, de crueldade, de violência determinada, sem rosto, com sua característica foice que parece representar o momento em que corta a cabeça de quem veio buscar. Não há representação do aspecto natural.