Comportamento & Equilíbrio

Torturar uma Criança, a vulnerabilidade e a tolerância — Parte V

Imaginar que obrigar uma Criança a conviver com quem lhe maltrata fará com que ela passe a amar essa pessoa é uma insensatez completa

A tortura institucional contra a Criança tem sido aplicada a céu aberto. Logo que pensamos nesse ponto, nos lembramos das sessões de tortura perpetradas por autoridades arbitrárias e cruéis para obtenção de confissões que não importam a veracidade. Só importa que “o preso confessou”, dizem.
Mas existe uma tortura praticada contra a Criança em nome de uma falácia de “revinculação”. Não conseguimos imaginar onde está ancorado esse tipo de pensamento sem fundamento e equivocado. Baseado em crueldade e ignorância teórica, a Criança é forçada a convívio em visitas monitoradas ou ao convívio por guarda compartilhada sem considerar o Melhor Interesse da Criança.

Obrigar uma Criança a “amar” um pai que é seu agressor? É possível obrigar a gostar? Parece que estamos voltando à idade da pedra. Em que se fundamenta uma tese cruel e desumana de que o título de pai estaria acima de qualquer circunstância? Até pais estupradores, condenados por tal, têm, hoje, em sua defesa a obrigatoriedade judicial do convívio com a Criança vítima de seus estupros.
Forçar a convivência não resulta em afeto positivo. Pode, no entanto, fomentar rejeição, repúdio, ódio. A exposição continuada à pessoa, que independente de qualquer título que possua, o de pai, por exemplo, é um trauma continuado. A Criança não “se acostuma”, ela sucumbe, desiste e sofre as repercussões disso. É descabido e cruel se aproveitar de um Poder que deveria ser a garantia de Proteção e que se torna uma arma contra a vulnerabilidade da Criança.

Menina chorando (Foto: Jill Greenberg)

A falácia da “revinculação” evidencia o total desconhecimento do conceito de vínculo afetivo. Segundo Bowlby, o comportamento de apego tem seu lugar na Natureza. Está em várias espécies de animais. O que faz com que os filhotes recém-chocados em seus ovos, reconheçam sua mãe desde o primeiro momento de seus primeiros passos? A busca por sobrevivência encontra no impulso natural do cuidado o encaixe que abre espaço para a maternagem. Algumas espécies têm a participação, em algumas tarefas, do pai, na formação das crias. Mas, Bowlby afirma em seu livro “Apego”, que compõe a trilogia Apego, Separação e Perda: “na maioria das espécies, os jovens mostram mais de um tipo de comportamento que resulta em proximidade entre eles e a mãe”.
É preciso entender que o comportamento de apego, mesmo sendo manifestado pelos pequenos, é uma via de mão dupla, ou seja, a criança se apega e estimula àquele que lhe garante a continuidade da vida, atribuindo, reciprocamente, uma especificidade particularizada. Apego e cuidado andam inseparáveis para promover o desenvolvimento dos filhotes da maioria das espécies. O homem está entre elas.

Interromper esse processo natural de crescimento é comprometer a saúde mental das Crianças. E imaginar que obrigar uma Criança a conviver com quem lhe maltrata fará com que ela passe a amar essa pessoa, é uma insensatez completa. O vínculo é formado e alimentado por apego e cuidado em reciprocidade entre uma dupla mãe-bebê, especialmente entre os mamíferos. A amamentação do início da vida caracteriza a vinculação preferencial. Se conseguimos compreender a definição do conceito de vínculo, facilmente, constatamos que essa tese da “revinculação” é insustentável e maliciosa.

Comportamento do Apego entre mãe e bebê (Arte: Juliana Pereira/Foto: mapodile/Getty Images)

Laplanche e Pontalis, no dicionário de Psicanálise, definem o vínculo como “o ato de eleger uma pessoa ou um tipo de pessoa como objeto de amor”. Para esses autores “trata-se de uma inter-relação, isto é, não é apenas da forma como o sujeito constitui os seus objetos, mas, também, a forma como estes modelam a sua atividade”. E continuam: “o vínculo afetivo está no comportamento do cuidador na relação com a criança”.
Forçar uma criança ao convívio com seu agressor/abusador é encobrir, intencionalmente, crimes contra a Criança, é violência institucional. Usando mais um argumento insustentável, a Igualdade Parental, desvia-se o foco das RESPONSABILIDADES PARENTAIS, (excelente título de obra da Juíza Clara Sottomayor), que importam para a formação da Criança, para uma espécie de romance jurídico que pretende dividir a criança ao meio, quase literalmente, como se possível e saudável fosse. “Revincular” à força é torturar.
O “Comunicado de Prensa: una justicia cruel, inhumana y degradante” traz uma denúncia internacional contra uma juíza e dois advogados pelos maus-tratos aberrantes de uma menina de seis anos que, aos três, relatou abusos sexuais por parte de seu pai, quando esses operadores de justiça insistem em “revincular” essa menina ao pai, submetendo-a a tratamento cruel, inumano e degradante.

A denúncia criminal é assinada pelo Juiz Carlos Rozanski, argentino, (AEVAS), Bettina Calvi, Dora Barrancos, Liliana Hendel, Diana Maffía, Telma Fardin, Enrique Stola (Médico Psiquiatra), Nora Schulman (CASACIDN), María Müller (Salud Activa), Sonia Vaccaro (Perita Internacional, España), Isabel Quadros (Colômbia).
Se já se divulga que os pais não devem forçar a Criança a dar abraço e beijinho naquelas pessoas que ela se recusa, dentro da prevenção e proteção dela, por que a justiça insiste em forçar a Criança a amar quem ela não quer? Alguém da justiça imagina que também aqui pode haver um motivo para a recusa?
Até quando Crianças vão ser arrastadas aos prantos e gritos de terror para serem entregues para conviver com seus agressores? Perdemos o bom senso?

Ana Maria Iencarelli

Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos.

Related Posts

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

EnglishPortugueseSpanish