Comportamento & Equilíbrio

Como cresce uma Criança? — Parte I

Precisamos também pensar que, para além da etapa de desenvolvimento da Criança, o terreno em que o episódio traumático ocorre vai imprimir ali, nesse mesmo terreno, a sua marca

De pronto, podemos até achar que alimentando e dando um pouco de ar livre para ela se movimentar, assim a Criança cresce. O crescimento de uma Criança é um processo complexo e de enormes dimensões, que está à nossa vista, mas, pouco é reparado. Elas crescem debaixo de nossos olhos e ouvidos, e não vemos nem ouvimos esse crescimento, tudo tão naturalizado que não chama nossa atenção.
No entanto, é importante conhecer um pouco desse complexo processo que transporta um ser muito precário, muito inábil, muito dependente, para um ser que busca autonomia para viver em sociedade, condição, especificamente, humana. Nascemos com quase completa incompetência para garantirmos nossa sobrevivência. Apenas o choro, de corpo inteiro, imprime a comunicação com o entorno. É preciso decodificar todos os sinais que um recém-nascido emite. A interpretação da mãe é essencial nesta fase. Nada é garantido, é a intuição que orienta essa Mãe.

O grau de dependência traz a evidência das diversas deficiências ao nascer. Não conseguimos nem mesmo buscar o alimento como se comportam os mamíferos herbívoros que se põem de pé e buscam por conta própria o aleitamento materno em menos de 20 minutos. Os bebês humanos demoram um ano para que possam se por de pé e mais alguns anos para que o alimento seja buscado por ele mesmo.
Assim, as Crianças não são iguais entre elas, como também não sofrem igual nas diferentes etapas de seu desenvolvimento. Ou seja, um dado trauma atinge, diferentemente, em cada faixa etária, porquanto o nível de desenvolvimento, em seus diferentes vetores, danifica de maneira distinta tanto qualitativa, quanto quantitativamente.

Se esse bebê é submetido à dor repetida, causada por fator externo, da mesma maneira como ele chora com o corpo todo, essa dor infringida por alguém, ficará registrada como uma ameaça à sua integridade total (Foto: Pinterest)

Se a Criança está no início da vida, suas aquisições são ainda reduzidas, o efeito de uma situação que transborda o suportável por sua mente naquele momento, trauma, irá depender da quantidade de capacidade de organização mental adquirida. Um bebê, com sua mente ainda desorganizada, terá a marca difusa do traumatismo. Se esse bebê é submetido à dor repetida, causada por fator externo, da mesma maneira como ele chora com o corpo todo, essa dor infringida por alguém, ficará registrada como uma ameaça à sua integridade total.

Precisamos também pensar que, para além da etapa de desenvolvimento da Criança, o terreno em que o episódio traumático ocorre vai imprimir ali, nesse mesmo terreno, a sua marca. Se uma criança, em meio à sua aquisição da marcha, sofre uma dor por uma imperícia sua isso irá bloquear, temporariamente, ou até, permanentemente, a sua atração pelo desafio, pelo risco que correu e não deu certo, acarretando assim uma impressão, uma tatuagem, de insegurança pela dor sofrida.
O crescer é processo muito dinâmico em que vários sistemas estão em atividade contínua. Como uma orquestra, os eixos do desenvolvimento estão em constante busca de uma harmonia, nem sempre alcançada. O mais importante é que nenhum dos quatro eixos, motor, cognitivo, linguístico e afetivo, não seja obstruído, que haja uma comunicação livre entre eles.

A maturação neuronal vai percorrendo a coluna vertebral, descendo, surge o sorriso, a coordenação óculo-manual, a preensão por pinça fina, o sentar, momento especial, o ficar em pé, a marcha, a corrida e as acrobacias (Foto: Reprodução Facebook)

O desenvolvimento motor é um árduo trabalho que se processa segundo a maturação neuronal na direção céfalo-caudal. Sustentar a cabeça é a primeira aquisição e permite que comece a acontecer o primeiro controle motor. A maturação neuronal vai percorrendo a coluna vertebral, descendo, surge o sorriso, a coordenação óculo-manual, a preensão por pinça fina, o sentar, momento especial, o ficar em pé, a marcha, a corrida e as acrobacias.
O aparecimento do sorriso, por volta dos dois meses de idade, é um desses muitos momentos que implicam mais de um eixo de desenvolvimento. É motor enquanto coordena uma expressão facial, mas é também da ordem do desenvolvimento afetivo, enquanto primeira resposta social. O espelhamento do sorriso da mãe provoca em comportamento de imitação, muito satisfaz a mãe, que passa a repetir o estímulo com entusiasmo.

Esse primeiro jogo de interação é logo seguido pelo segundo jogo que o bebê descobre, experimentando a interação e aprovação das pessoas próximas. Com a aquisição da coordenação óculo-manual, o bebê “se esconde” atrás de um paninho, e, repetindo várias vezes esse comportamento, sintonizando com as exclamações “cadê o neném” e “achou!”, sorrisos, muita movimentação de braços e pernas, é o corpo inteiro que sente prazer. Parece fácil. Mas é uma operação de grande esforço para o bebê. Brincar é uma atividade afetiva e social, e essa é a primeira brincadeira movida pelo bebê. E, pela vontade de realizar repetidas vezes, brincar de existir e inexistir, mesmo que seja sem saber do conceito de existência, é um ato cognitivo.

Sustentar a cabeça é a primeira aquisição e permite que comece a acontecer o primeiro controle motor (Foto: Raquel Espírito Santo/Editora Globo/Diego Nareba)

Essa brincadeira traz também uma comunicação através da linguagem corporal. Está dito pelo bebê que ele está satisfeito, está alegre. Este pequeno comportamento, que contém os quatro eixos do desenvolvimento, parece fazer parte intrínseca do crescimento dos bebês, tamanha a sua incidência.
O momento do sentar é outro ponto que quebra um paradigma do mundo da Criança até então. Ao se tornar capaz de sentar, o bebê tem sua percepção de mundo modificada. O bebê, pela primeira vez, usa o seu corpo colado ao chão como o ponto zero para olhar as dimensões do mundo que lhe cerca. Até então ele era carregado no colo de um adulto, ou empurrado num carrinho em movimento, sem a possibilidade de ele mesmo coordenar essas percepções do seu mundo. Os tamanhos gigantescos desse momento trazem medo, choros quando a mãe se ausenta do ambiente, movimentos em busca da pessoa asseguradora, é sua primeira experiência assustadora que tem repercussões afetivas. O sentar também é uma experiência dos vários eixos do desenvolvimento. Diferente do brincar de esconder com o paninho, momento de alegria, o sentar dói, momento de angústia. A primeira.

Ana Maria Iencarelli

Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos.

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