Comportamento & Equilíbrio

Constelações Familiares, uma seita nos Processos de Família — Parte III

As crenças religiosas têm importância para os seres humanos. No entanto, o empirismo, a extrema subjetividade, o sobrenatural, o esotérico, o obscurantismo, não devem ser o árbitro de sofrimentos físicos e psicológicos

Onde entram os cavalos puro-sangue? Devem estar pensando que passei a escrever contos. Não. São fatos que descrevo, com alguma emoção, confesso, porque não me são inócuos. Antes dos cavalos, preciso esclarecer um pouco sobre o script de uma constelação familiar. Existem algumas ditas revelações que são muito frequentes, quase uma unanimidade. Abandono, aborto secreto, relação extraconjugal secreta, desvalorização, vingança inconsciente, perdão.

A escolha aleatória das posições no espaço, dito, quântico e suas movimentações, virar para um lado ou virar para o outro, tem a leitura de significado peremptório na história da violência. Explicando melhor. As pessoas que encenam o teatro da dor daquela pessoa que denunciou um abuso ou uma violência doméstica, incluindo agressões físicas graves, fraturas, esses “atores’ escolhidos pelo constelador ou consteladora, se posicionam parados no lugar indicado pelo constelador, podendo ficar de frente, de lado, ou de costas, o que será, imediatamente, interpretado como sendo um significado afetivo de quem ele está representando, mesmo que aquele que foi escolhido para encenar o papel ali, não tenha nem ideia do que se trata.

Mas, sem nenhuma fundamentação, o constelador “diz” que a posição assim ou assado que os “atores” do improviso assumem, significa tal ou qual coisa na história de vida da pessoa agredida pelo familiar. A posição de costas, por exemplo, é sempre interpretada como um “dar as costas” para o problema familiar, logo, abandono, rejeição. Como adivinhos, tudo é clarificado pelo constelador, explicando as emoções, principalmente as antigas, que ele garante, foram sentidas pelo ancestral excluído da família por ter praticado uma violência contra um de seus componentes, esposa, filha e filho, em geral.

Como adivinhos, tudo é clarificado pelo constelador, explicando as emoções, principalmente as antigas, que ele garante, foram sentidas pelo ancestral excluído da família por ter praticado uma violência contra um de seus componentes (Foto: Pinterest)

Como a dita formação de Consteladores nada exige na área do conhecimento Científico, do conhecimento Formal, qualquer pessoa, qualquer, pode se tornar um constelador e, com sorte e indicação, pode vir a ser um preferido de alguma Vara de Família. Assim, existe uma variedade de perfis que vão de A a Z nas profissões anteriores praticadas. Importante ressaltar aqui que seria impossível formular um Conselho Profissional, que acompanha cuida e fiscaliza a prática, posto que vindo de várias áreas de conhecimento formal e também de não conhecimento formal, pode, o que tornaria bem difícil. Código de Ética? Como? Quais critérios poderiam ser elencados? Mas, para a Justiça, nada disso importa. O encantamento pela magia de se iludir com uma solução dada por um ancestral morto há muitas décadas, é maior que tudo.

Nesse contexto, cada um inova como bem quiser. Assim, uma consteladora, que é proprietária de cavalos puro-sangue no Jockey de São Paulo, pratica as sessões de constelação familiar no estábulo, não sei se esse é o nome correto, ao lado das baias de seus cavalos. É um serviço que presta individualmente, ou seja, a pessoa que busca ajuda, ela, e três cavalos. As duas pessoas, sentadas, os cavalos no entorno. O jornalista independente, Tomás Chiaverini, foi conferir e relata uma sessão que pagou para ter o “benefício” de tomar conhecimento de segredos de família que iriam ajudá-lo em determinada situação. Ele relata tudo em podcast, Episódio 77 da Rádio Escafandro. A consteladora faz algumas perguntas e muitas afirmações. Orientada pelos cavalos que ela interpreta como sendo uma comunicação precisa sobre a vida e a história familiar do jornalista.

Um dos cavalos mordisca a orelha, o cabelo, da consteladora, o que “significa’ que está lhe dizendo isso ou aquilo, porque ele estaria em conexão com antepassados do jornalista. A cada mordiscada do cavalo, uma “revelação”, porque, segundo a consteladora, os cavalos seriam mais competentes, mais fidedignos nas transmissões, ao se conectar com os mortos.

Para dar um toque de “ciência”, a tese usa alguns termos da física quântica. A doutora em Física Quântica, Gabriela Bailas, refuta, inteiramente, essa alusão. Nada tem de física quântica em explicações sem fundamentação dos doutrinados em Constelação Familiar. No site “Física e afins” encontramos material científico sobre esse tema. Na próxima semana, trarei os locais onde encontrar os estudos e posições científicas que criticam essa tese que pega carona na pseudociência.

Código de Ética? Como? Quais critérios poderiam ser elencados? Mas, para a Justiça, nada disso importa. O encantamento pela magia de se iludir com uma solução dada por um ancestral morto há muitas décadas, é maior que tudo (Foto: Pinterest)

Adolescentes definiriam como “é muita viagem”. Falta lógica, falta realidade, falta bom senso. Falta responsabilidade com a Dignidade Humana. Sobra magia, sobra arbitrariedade, sobra insensibilidade, sobra irresponsabilidade com a dor da vítima de uma violência intrafamiliar. Cabe ressaltar que o fator intrafamiliar agrava sobremaneira o ato violento porque está inserido em meio de afetos. A formação de uma família, em qualquer formato que tenha, é feita por afetos vários. Daí, a dor de ser agredido por um familiar potencializa as consequências da violência.

As crenças religiosas têm importância para os seres humanos. No entanto, o empirismo, a extrema subjetividade, o sobrenatural, o esotérico, o obscurantismo, não devem ser o árbitro de sofrimentos físicos e psicológicos que causam sequelas permanentes. Há que se compreender que quem sofre uma violência física, uma violência sexual, precisa de um tempo indeterminado para que haja alguma cicatrização daquele golpe. Sabemos que é muito difícil para os senhores da Justiça viver a impotência diante de uma repugnante violência. Mas culpar a vítima e desresponsabilizar o autor, como faz a tese das constelações familiares, só agrava a questão a níveis inacessíveis. É a injustiça.

Cavalos na baia e posições no espaço físico de uma sala, não podem elucidar e tratar angústias, nem o “motivo” de um espancamento ou de um estupro. Repito a pergunta: será que os Operadores de Justiça têm certeza que estão praticando o bom exercício da argumentação para o convencimento do justo julgamento?

Ana Maria Iencarelli

Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos.

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