A barbárie com as Crianças Ianomâmis, e as outras Crianças — Parte II
Somos, cada vez mais, cegos, surdos e mudos, para a compaixão com o outro. E a Criança tem sido, cada vez mais, negligenciada e depredada
“Ana, vai doer?”, era um menino, 10 anos, no período terminal de sua doença. Câncer. Tinha medo. Tinha culpa por deixar seu pai, que sabia ia sofrer muito com sua morte, não admitia, apesar de todas as evidências e notícias médicas.
A morte, para uma Criança, é de difícil compreensão. Seu funcionamento cognitivo, em raciocínio concreto, não encontra respaldo na ideia de morte, que conjuga a abstração absoluta à irreversibilidade dura. Os adultos, muitos, permanecem com essa dificuldade de pensar a morte pela sua irreversibilidade e pelo desconhecimento que está nela contido.
As Crianças sentem responsabilidade pelos adultos que amam. As Crianças mais bem nutridas afetivamente começam a ter empatia na infância. Essa dimensão humana, tão necessária, se constrói através do cuidado com o outro, uma evidência dessa empatia.
Quando olhamos para as Crianças, as aranhinhas Ianomâmis, que não choram, não se mexem, evidenciando a falência de qualquer réstia de força física, nos perguntamos: como algumas delas abraçam o que está ao lado? Numa postura de proteção, mesmo que ela não exista nessa condição em que estejam, é a empatia que se mostra para todos nós. Elas nos mostram como devemos nos comportar com apenas um gesto singelo.
No entanto, somos, cada vez mais, cegos, surdos e mudos, para a compaixão com o outro. E a Criança tem sido, cada vez mais, negligenciada e depredada. Parece que acreditamos na estupidez da negação da gravidade de comportamentos nossos, contra elas, apostando que a Criança vai esquecer. Nossa memória é dinâmica, mas, muito complexa. Situações traumáticas não são nunca esquecidas. São guardadas. Às vezes, a sete chaves, mas estão ali, atrás das sete fechaduras. E podem reaparecer.
Distante, geograficamente, o terremoto na Turquia e na Síria, trouxe imagens dolorosas. Crianças retiradas depois de dias de soterradas por montanhas de escombros. São salvas para o relento frio intenso, salvas para o nada. Terremoto de grandes proporções que derruba ruínas humanas na Síria, já arrasada por uma guerra civil que dura anos. Meu avô materno era sírio, daquela região que foi destruída. Não tenho ideia de quantos familiares perdi para as bombas e mísseis. Sensação muito esquisita de perder quem não conheci, mas que era do mesmo grupo que pertenço. Crianças, quantas, órfãs, mutiladas, mortas.
Por aqui, mais Crianças em vulnerabilidade social, têm sua casa com as poucas coisas que os pais conseguiram juntar, cair na correnteza dos temporais, engrossando uma lama que tudo cobre. É o exercício periódico do perder o quase nada que tinha. Quantas vezes, os que não perderam a vida, foram alagados dentro de suas modestas e arriscadas casas? A solidariedade imediata chega. Mas a solidariedade de Políticas Públicas, não.
Mas, não só de carências morrem nossas Crianças. As fomes são diversas. Há fome de nutrientes, exibida pelas Crianças Originárias da Amazônia. Há fome de Segurança Pública nos tiros de fuzil que matam meninos e meninas nas Comunidades sem Cidadania. Há fome de Segurança Habitacional nas encostas ou nos prédios da Turquia e da Síria que não seguem os protocolos de construção. Há fome de conhecimento que não permita substituí-lo por seitas e dogmas sem fundamentos. Há fome quando uma psicóloga judicial faz campanha desqualificando a lei da Escuta Especial, justiça contra Justiça. Há fome de Proteção dentro das casas onde Crianças são espancadas até a morte e/ou abusadas sexualmente, com a omissão do entorno.
Há fome de Justiça quando predadores de Crianças ficam impunes, acobertados por “leis” absurdas, como a lei de alienação parental ou a obrigatoriedade da guarda compartilhada, beneficiando agressores.
Há que se fundar a Cultura do Respeito à Criança. Há que se escutar a Criança, ao invés de se valer de falácias e de verdadeiras fábulas montadas por técnicos que usam pequenas informações de orelha de livro para interpretar, quebrando o compromisso profissional e Ético, de ajuda.
Assistimos uma sucedânea de aberrações afirmadas, sem nenhum pudor com a falta de razoabilidade, aliás um Princípio Constitucional, que ganham seguidores ávidos por ganhos fáceis, muitos, mantendo, assim, a fome de Dignidade da Criança.
Essa lei de alienação parental tem mutilado um enorme número de Crianças vítimas de abusos sexuais incestuosos, patrocinando a Privação Materna Judicial, porque se acredita que a mulher é louca e a criança um robô que repete um relato “dirigido’ por essa mãe louca. O mito da Mulher louca, ressentida e interesseira foi trazido por essa lei ao mais alto pódio.
É inexplicável que alguém, uma mãe, sempre, seja penalizada por alienação parental inconsciente. Sim. Pasmem. É como se eu fosse condenada porque um operador de justiça “descobriu” que eu tinha um desejo inconsciente de matar um vizinho que me incomodava por algum motivo. Sem ter cometido o crime, pelo meu desejo inconsciente, eu seria punida. É certo isso? A “alienação parental inconsciente”, uma fabulação, é suficiente para inversão da guarda, com a entrega da Criança para o genitor que tinha sido denunciado por violência física ou sexual contra uma filha ou um filho.
A mesma justiça que pede materialidade concreta em denúncia de abuso, sentencia uma mãe por alienação parental inconsciente. E a materialidade? Para esmagar e amordaçar a mulher, não se faz necessário.
“Vai doer?” A morte, não. Viver assim, dói, imensamente. O desamparo dói.