Comportamento & Equilíbrio

Como e por que matamos nossas Crianças e Adolescentes? — Parte I

Crianças “PPPs” morrem facilmente de tiro de fuzil. Mas não sofrem pela prática de alienação de suas mães. Crianças que não vivem em comunidades, morrem pela indignidade de violações de seus corpos, enquanto o silêncio e o dogma acoberta o predador

Onde escondemos nossa cara para não ver o que estamos fazendo com nossas Crianças e Adolescentes? No Rio de Janeiro foram assassinadas à bala 11, em sete meses e 10 dias. Foram três nos últimos seis dias. Eloáh, cinco anos, estava em seu quarto, acordando. Thiago, 13 anos estava passando na garupa de uma moto. Quais os crimes que eles cometeram? Temos pena de morte? A única constatação é que são pessoas “PPPs”, pretas, pobres e periféricas. Para adultos, já estávamos desconfiados, mas para Criança, que não entra em “confronto”, a desculpa de praxe para as mortes desses adultos, na maioria das vezes, identificados como bandidos. Julgamento sumário, reatividade em velocidade máxima, nunca registrado pelas câmeras corporais. Também nesse lastro de violência letal, agentes do Estado são igualmente “eliminados”.

A celebração da violência mais primitiva se faz presente na vida cotidiana, como quem pede uma licença para uma naturalização. Todos os dias vemos nos jornais essas notícias e, por vezes, ficamos confusos achando que essa foi a notícia de ontem ou de anteontem. Temos a mesma sensação de repetição, de “déjà vu”, quando estamos recebendo mais um caso da invenção de “alienação parental”. São muito iguais.

Moradores da Cidade de Deus realizam ato em memória do adolescente Thiago Menezes (Foto: Reprodução)

No entanto, a evidência de Cidade Partida, de Sociedade Partida, se impõe. Longe do território onde vivem as Crianças “PPPs”, a alienação parental também mata. Joanna Marcenal foi a primeira vítima dessa perversidade. Crianças são assassinadas por espancamentos repetidos, ou por incestos praticados em abusos sexuais. Se não morrerem, biologicamente, morrem psiquicamente, moralmente, em opressão continuada, pelo estupro de sua dignidade.

A indústria da alienação parental precisa de Crianças do grupo dos abastados. Não temos litígio iniciado por denúncia de maus tratos, violência física ou sexual quando a justiça não faz parte da ala privada. Por que não existe entre as Crianças “PPPs”? Não se fala nisso, mas a lei de alienação parental, além de misógina, sexista, é elitista. Ela requer muito dinheiro para levar advogados e psicólogos ao fornecimento de petições e laudos, regiamente pagos, sempre, esses últimos que nem precisam da presença da alcunhada “alienadora”.
Não há nenhum interesse em se averiguar a etiologia do termo. Sem cientificidade, mas gozando de uma aceitação dogmática na justiça privada.

Alienação parental é dogma na justiça de família. Sua simples ameaça já imobiliza o protetor ou protetora da Criança, como instruiu seu inventor Gardner. Ele chamou essa estratégia de “terapia da ameaça”. Funciona como tal. Todos os que buscam a Proteção Integral da Criança, sabem que uma alegação de alienação parental tem um caminho muito curto e sem volta em direção à perda da guarda e entrega de sua Criança, como brinde, ao seu agressor.

Crianças “PPPs” morrem facilmente de tiro de fuzil. Mas não sofrem pela prática de alienação de suas mães. Crianças que não vivem em comunidades, morrem pela indignidade de violações de seus corpos, enquanto o silêncio e o dogma acoberta o predador. Umas e outras na nossa sociedade partida, sucumbem à violência de todos nós, os proativos executores e os omissos da barbárie que se escondem negando a responsabilidade que têm.

O Brasil escreve sua história com sangue de crianças (Foto: Favela em Foco/Facebook/Reprodução)

Se há ausência de rastro das práticas libidinosas, meticulosa e propositalmente ocultas, desqualificamos o Relato da Criança que descreve com coerência e detalhes imagens que não podem constar de seu acervo mnêmico, porquanto seu desenvolvimento cognitivo não permite. Apreendendo o mundo pela experiência, ou seja por raciocínio concreto, a Criança refere a sexualidade masculina com a exatidão da experiência de ter vivido. Mas é desacreditada por completo. Afinal tem o termo de plantão, “mãe alienadora”, que varre o crime para baixo do tapete, reduzindo tudo a “conflito”. É a lei da mordaça.

Henry foi morto por violência física de um adulto da “família”, com o conhecimento e o consentimento de outros familiares, que deveriam ser próximos, e das pessoas que faziam o papel de cuidadoras. Ninguém viu as marcas que ele exibia em seu corpinho ainda pequeno?
Estamos eliminando nossas Crianças. Estamos mutilando as que escapam da morte física, aprisionando-as no ciclo da opressão. Uma Criança que vê a morte de outra de seu tamanho, ou que é testemunha de violência sexual do seu lado, tem um dano permanente em sua mente. Por que estamos desprezando esse sofrimento? Por que caímos na esparrela de achar que ela vai esquecer? Que elas vão esquecer?

Onde se esconde o conhecimento técnico e teórico dos profissionais que deveriam garantir os Direitos Fundamentais?

Ana Maria Iencarelli

Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos.

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