Comportamento & Equilíbrio

Cultura de Estupro de Mulher e de Estupro de Criança — Parte I

A voz da Criança é, completamente, desacreditada. E, ela é culpabilizada. Sentir MEDO? O que é isso? Assim também é quando uma mulher é estuprada. Por que ela estava ali naquela hora, ou com aquele vestido?

O Direito ao MEDO, que tantas vezes é subtraído da Infância, não é exclusivo dessa fase da vida. O MEDO é o sinal de alerta da preservação da vida, da autoproteção, é a evidência do bom funcionamento cognitivo. Estruturas Cerebrais do Sistema Límbico garantem essa função de preservação, operacionalizada pela sensação de MEDO. Quando há uma alteração no desenvolvimento neuronal dessas estruturas, seja por um estímulo excessivo, seja por uma continuidade por repetição de um comportamento imposto, temos na Criança o resultado de atrofias dessas estruturas, o que compromete a execução de sua função.
As duas formas de violência que promovem o Impacto do Extremo Estresse são a violência física, e a violência sexual. Entendemos que são essas duas formas que promovem a sensação aguda de impotência diante do agressor. As outras formas de violência, também são nocivas, mas deixam sempre alguma saída possível, mesmo que seja pela fuga.

O Impacto do Extremo Estresse tem sido estudado em grupos adultos que sofreram dessas duas formas de violência na Infância. Uma ou outra, e a combinação das duas. Este é o ponto crucial que é renegado, o MEDO, e, assim, cobrada a reação que bloquearia a empreitada do abusador. Pura ilusão, apenas mostrando a rejeição à Empatia necessária. As consequências têm sido contabilizadas. Doenças mentais, psicoses e depressões, autoflagelação, tendência suicida, foram encontradas em associação com a história de abusos físicos e sexuais. No campo neurológico, a Epilepsia de Lobo Temporal é um indício forte pela grande incidência nesse grupo de vítimas, em comparação com o grupo da população geral.

(Foto: iStock)

A dificuldade de estabelecer critérios científicos para as pesquisas nessa área, muito pesa na escassez de material experimental comprovado. Não podemos testar durante a infância. Nem temos acesso aos processos que se arrastam, maltratando as Crianças que apontam abusadores intrafamiliares. O segredo de justiça fornece essa cobertura para os agressores. Não sejamos ingênuos em pensar que as Crianças vítimas de abusos, não são identificadas em seu mundo social, a começar pela escola. Claro que chama a atenção que uma Criança de cinco anos, de oito anos, more com o genitor e que a mãe não apareça nem nas festinhas da escola. As especulações acabam por penalizar mais ainda essa mãe. O que vigora é aquele tipo de maledicência, “juiz nenhum tira uma Criança da mãe, então alguma coisa muito grave ela fez”. É verdade. Ela fez sim: denunciou um homem pela prática de abusos, acreditando em seu filho ou filha. Isso é muito grave, não é?

Campanhas partem da premissa que a Criança precisa aprender a dizer “NÃO” ao abusador, esquecendo que, na imensa maioria das vezes, em torno de 80%, 90% ele é um homem a quem ela ama e obedece. Como pensar em exigir essa tarefa de uma Criança. E os bebês, igualmente abusados física e sexualmente, seriam capazes de pronunciar o “NÃO” antes mesmo de adquirirem a linguagem? São erros de lógica. Basais. Vislumbra-se a intenção, no entanto, de responsabilizar a vítima pela agressão que ela sofre. Ela é a culpada. A voz da Criança é, completamente, desacreditada. E, ela é culpabilizada. Sentir MEDO? O que é isso?

Assim também é quando uma mulher é estuprada. Por que ela estava ali naquela hora, ou com aquele vestido? Por que ela não impediu? Ou melhor, por que ela não reagiu, disse “NÃO”? Mas, se ela foi dominada, se há alguma compaixão pela situação de violência que passou, ela tem que sair dali e fazer a denúncia, como se tivesse tido seu celular furtado, nem roubado, furtado. É esperado da Mulher que ela reaja, que ela diga “NÃO”, que ela cumpra o ritual da saga policial e judicial com toda firmeza e tranquilidade.

Crianças e Mulheres são assassinadas todos os dias (Foto: iStock)

MEDO? A Cultura do Estupro de Mulheres, Meninas e Meninos, se aloja e se beneficia do encaixe do MEDO na VULNERABILIDADE. A condição de vulnerável, a Mulher continua nesse espaço, porquanto não tem a mesma força física de um homem e carrega, diria mesmo, a ameaça ontológica do estupro. Como se fosse uma ontologia de tarefa a cumprir pela Mulher.

Crianças e Mulheres são assassinadas todos os dias, em curva estatística ascendente, só servem para isso, à luz de leis que são desrespeitadas, pela sociedade e, até mesmo, pelos agentes de justiça. Há poucos dias tomei conhecimento de um estupro ocorrido em comemoração entre colegas de trabalho, no ano passado, 2022. A equação da prerrogativa de “ser familiar” foi usada, como é muito frequente, tendo hierarquia ou não entra criminoso e vítima. Não era a hora errada, ou o lugar ou o vestido. A vítima foi muito atingida psicologicamente, precisou de um tempo para se restabelecer. E por causa disso, perdeu credibilidade. A morosidade e burocracia pleitearam, com sucesso, a impunidade que segue. É a impunidade que acoberta esses crimes cujos processos são regidos por lei testosterona.

Ignoramos, deliberadamente, as evidências da paralisia absoluta causada pelo MEDO durante um estupro. Tanto em se tratando de uma Criança, quanto em se tratando de uma Mulher. Essa paralisia proporciona uma falsa sensação de “consentimento”, muito alegada pelos predadores sexuais. O MEDO? Tornou-se ilegal e ilegítimo sentir MEDO diante desse tipo de ameaça. Parece que é esperado sempre que a Mulher se submeta. E as Crianças também.

Ana Maria Iencarelli

Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos.

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