Brincar ainda cabe na rotina das crianças? Especialistas explicam como achar um equilíbrio

Entre inglês, balé, robótica e natação, será que ainda sobra tempo para brincar? É preciso refletir sobre o que é realmente essencial na rotina das crianças e o que pode esperar. Como sempre, a chave é o equilíbrio
Por Fernanda Montano
O despertador toca às 6h20. Em 30 minutos, Clara, de seis anos, já está pronta para a escola. Quando sai de lá, não vai direto para casa: às segundas, tem natação; nas terças, balé; quartas são para o inglês; e quintas, a robótica. Às sextas costumavam ser livres, mas agora também têm uma atividade “complementar”. A mãe, a advogada Camila Marques, 39, acreditava que estava fazendo o correto. Até que veio o alerta: “ela começou a chorar para ir ao inglês, que antes adorava. Disse que estava cansada e só queria brincar com os brinquedos dela. Aquilo me doeu”, conta.
A cena pode soar familiar para você e muitas outras famílias. Com o desejo de proporcionar o melhor para os filhos, não é raro que pais e mães preencham cada pedacinho do tempo livre com alguma atividade. Mas será que essa lógica de “quanto mais, melhor” funciona quando o assunto é infância? A ciência diz que não. Estudos apontam que o cérebro das crianças, por exemplo, precisa de pausas para processar aprendizados. Um artigo da Scientific American mostra que o tempo livre e o descanso não representam desperdício de horas, mas, sim, um componente essencial para consolidar memórias e construir conexões neurais duradouras. Essa constatação é reforçada por uma pesquisa conduzida pela pedagoga Ana Paula Maia Ferreira, da Universidade Federal do Pará (UFPA). Os dados apontam que o excesso de estudos e atividades extracurriculares nega o direito de o pequeno viver plenamente a infância, comprometendo o brincar e desencadeando manifestações emocionais que prejudicam o desenvolvimento.
Estamos vivendo um tempo em que as crianças não têm mais tempo livre. Muitas têm uma agenda de miniexecutivos, o que gera estresse, ansiedade, comportamentos de irritabilidade ou até apatia”, explica a neuropediatra Liubiana Araújo, presidente do Departamento Científico de Pediatria do Desenvolvimento e Comportamento da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
Mais do que preencher lacunas cognitivas, a infância precisa de tempo: de brincar, de descansar, de não fazer nada. É justamente nesse “nada” que mora muita coisa, como a criatividade, a curiosidade, a segurança emocional — tudo o que se perde quando caímos na lógica de que todas as horas dos filhos precisam ser ocupadas. A meta não deve ser aproveitar as milhares de opções de atividades, mas encontrar equilíbrio na rotina das crianças para terem estímulos e períodos de não ter o que fazer.
Menos é mais
Quem já não ouviu algo assim: “é melhor colocar em tudo agora, enquanto a cabeça está fresca”. “Hoje em dia, quem não fizer inglês desde cedo fica para trás”. Essa cultura da alta performance se infiltrou até na infância. E embora as atividades extracurriculares possam, sim, contribuir para o desenvolvimento integral das crianças, a ideia de que é preciso ocupar todos os horários vagos com algum tipo de estímulo é, segundo especialistas, equivocada e perigosa.
O excesso sempre é desnecessário. A preparação para o futuro, nesse caso, é uma forma de fugir do presente”, afirma o psiquiatra Wimer Botura Júnior, médico especializado em saúde mental infantil e familiar, cofundador da Universidade de Pais.
Para Júnior, quando os adultos se movem pela ansiedade e comparação, esquecem de olhar para o que a criança realmente precisa. “A infância tem suas etapas. Queimar essas etapas não acelera o desenvolvimento — compromete”. Essa pressão por “aproveitar todas as janelas de oportunidade” traz efeitos colaterais. Um estudo publicado no periódico Economics of Education Review mostra que crianças pequenas submetidas a rotinas excessivamente estruturadas podem apresentar maior irritabilidade, dificuldades no sono, menor autorregulação emocional e desempenho prejudicado na aprendizagem.
Estamos criando crianças ocupadas, mas nem sempre curiosas. Cumpridoras de tarefas, mas pouco criativas”, alerta a psicóloga e neuropsicopedagoga Jéssica Bueno. Segundo Jéssica, a sobrecarga de Segundo Jéssica, a sobrecarga de necessário para elaboração das vivências, brincar de forma espontânea e até descansar o corpo e a mente. “Sem esse tempo, a criança não consegue processar o que viveu. E o que não é processado, não é integrado. Fica tudo acumulado, inclusive o estresse”.
Equilibrar é preciso
Além disso, diferentemente do que muitos imaginam, mais estímulo não significa melhor desempenho. O excesso pode gerar resistência. A criança perde o interesse pelo que antes a empolgava, apresenta sinais físicos como cansaço extremo, dores ou até crises de choro. Não é preguiça: é sobrecarga.
A boa notícia? Não é preciso escolher entre atividades ou descanso. O desafio está em calibrar a balança. E isso começa por uma mudança de perspectiva: em vez de buscar sempre mais, buscar o que faz sentido para a criança, respeitando seu ritmo, suas preferências e sua necessidade de apenas… ser criança.
A busca por um equilíbrio no dia a dia das crianças, no entanto, nem sempre é fácil. Uma pesquisa norte-americana, realizada pela One Poll e encomendada pela Elmer’s, feita com duas mil famílias mostrou que 81% acreditam que os filhos já saem da escola buscando algo para fazer e que o tédio costuma chegar apenas 33 minutos após o início de uma nova atividade.
O resultado: 35% dos pais relatam se sentir estressados por ter que pensar em maneiras de entreter as crianças, enquanto 58% estão preocupados com o excesso de tempo de tela.
A criança não precisa estar ocupada o tempo inteiro, mas não deve passar as horas vagas diante da TV ou do tablet. O ideal é criar uma rotina com propostas variadas, que incluam atividades prazerosas, momentos de vínculo em família, tempo livre e pausas intencionais. O ócio criativo também ensina”, orienta Jéssica.
Segundo a mesma pesquisa, nove em cada dez pais (91%) acreditam que as atividades fora da sala de aula devem, de alguma forma, contribuir para a aprendizagem — o que mostra que o desafio não é apenas preencher o tempo, mas ocupá-lo com propósito.
Efeitos da sobrecarga
Nem sempre é fácil perceber quando o limite foi ultrapassado. À primeira vista, a criança pode parecer apenas mais sensível, “manhosa” ou desinteressada por uma atividade que antes amava. Mas, com atenção, é possível identificar os sinais de que a rotina está pesada demais para o tamanho da infância. Entre os alertas mais comuns estão: irritabilidade sem causa aparente, sono agitado ou dificuldade para dormir, queixas físicas, como dores de cabeça ou na barriga, resistência a atividades antes prazerosas, choro frequente, queda no rendimento escolar e falta de tempo (ou disposição) para brincar. “É comum a criança começar a pedir para faltar, dizer que não quer mais ir. Quando isso começa a se repetir com frequência, é preciso parar e ouvir o que está por trás desse pedido”, orienta a psicóloga Jéssica.
Do ponto de vista emocional, o excesso de compromissos pode se transformar em um estado constante de alerta, dificultando o descanso e o relaxamento. “Quando tem uma rotina sobrecarregada, muitas vezes a criança não tem curiosidade — está tão preocupada em aprender o que lhe é ensinado que não tem tempo para questionar ou inventar algo novo”, explica o psiquiatra Wimer Bottura.
Para ele, a raiz do problema está, geralmente, mais na expectativa dos adultos do que nas reais necessidades das crianças. “O excesso de estímulo é reflexo da ansiedade dos pais. Mas a criança sente isso como cobrança e passa a agir de forma defensiva, ansiosa ou até perfeccionista”. Do outro lado da moeda, estão os comportamentos mais silenciosos: apatia, desinteresse, tristeza e isolamento. Como lembra a neuropediatra Liubiana Araújo, “o estresse tóxico gerado pela sobrecarga pode se manifestar de formas muito diferentes: algumas crianças ficam agitadas, outras se retraem completamente. Em todos os casos, é preciso observar e agir com empatia”.
Recalculando a rota
É importante lembrar que nenhuma decisão precisa ser definitiva. A rotina da criança pode — e deve — ser revista com certa frequência, à medida que crescem, mudam de interesses ou demonstram cansaço. “Toda família passa por momentos em que precisa recalcular a rota. E isso não é fracasso, é cuidado”, afirma a pedagoga Adriana Biasotto, coordenadora pedagógica na Educação Infantil e primeiros anos do ensino fundamental do Colégio Parthenon Bom Clima, em Guarulhos (SP).
O ponto de partida? Ouvir a criança. Entender o que ela gosta, o que deseja manter, o que já não faz mais sentido. Tenha essa conversa com seu filho prestando atenção até onde pode insistir em determinada atividade ou não. Foi exatamente essa escuta que levou o publicitário Rafael Lima, 42, a tomar uma decisão difícil: tirar o filho Pedro, de sete anos, da aula de judô. “Ele sempre gostou, mas começou a reclamar, dizer que estava cansado. No começo, achei que era preguiça, mas percebi que ele estava ficando mais irritado, dormindo mal. Um dia ele me disse ‘pai, eu não tenho tempo de brincar com os Legos’. Aquilo me desmontou. A gente acha que está oferecendo tudo, mas, às vezes, está tirando o mais importante”, conta. Desde então, a família reorganizou os horários e passou a reservar ao menos dois dias na semana sem nenhuma atividade. “Hoje, ele mesmo inventa o que quer fazer e voltou a ser aquele menino curioso, mais leve”, diz Lima.
Rota recalculada
Nem sempre é simples — ou confortável — admitir que a rotina dos filhos está pesada demais. Especialmente quando as escolhas foram feitas com carinho, expectativa e investimento. A frustração por sair de uma aula ou cancelar uma matrícula também pode ser acolhida com afeto. “Ficar triste por deixar uma atividade que gostava faz parte e pode ser uma chance para desenvolver resiliência emocional. O mais importante é explicar com clareza, envolver a criança na decisão e mostrar que a pausa também é valiosa”, diz Jéssica Bueno.
O psiquiatra Wimer Bottura concorda: “muitos pais tentam resolver a culpa com uma programação intensa. Mas o que a criança precisa, de fato, é de vínculo. E o vínculo se constrói com presença emocional, não com agendas lotadas”. Recalcular a rota, portanto, pode ser um ato de escuta, coragem e confiança. De entender que o melhor plano não é o mais cheio, mas o mais ajustado à realidade da criança e da família como um todo. E que o espaço vazio na agenda pode ser, na verdade, um espaço fértil: para o descanso, para a criação e para o simples prazer de viver a infância com leveza.
Agenda saudável
Nenhuma atividade extracurricular, por melhor que seja, substitui o que a criança aprende brincando, descansando ou simplesmente estando com os pais. Mas isso não significa que devam ser eliminadas da rotina. Quando escolhidas com intencionalidade e inseridas com equilíbrio, trazem ganhos importantes para o desenvolvimento infantil — cognitivo, motor, social e emocional.
Acredito muito que as atividades extracurriculares potencializem o processo de aprendizagem, desde que sejam escolhidas com cautela. O problema é quando deixam de ser uma oportunidade de crescimento e passam a ocupar todos os espaços da infância. É aí que perdemos o equilíbrio”, afirma a psicopedagoga Daniele Diniz, especialista em Neurociências, Desenvolvimento Infantil e Educação Socioemocional.
O segredo, vale reforçar, está em combinar estímulo e pausa, estruturado e livre. A pedagoga Adriana Biasotto explica que as atividades mais adequadas variam conforme a fase do desenvolvimento. Para os pequenos de até três anos, o ideal é que o primeiro grupo social, além da família, seja a escola, sem exageros no contraturno.
A partir dos quatro, vale introduzir atividades físicas bem planejadas, como musicalização e movimento. Já entre os seis e oito anos, jogos colaborativos e esportes que envolvem regras, desafios e interação são especialmente interessantes, pois ajudam a desenvolver funções executivas, como foco, flexibilidade e tomada de decisão. Esses benefícios também são sustentados por evidências científicas. Um estudo publicado no Journal of Infant, Child, and Adolescent Psychotherapy aponta que o brincar e o tempo livre, inclusive o guiado, como ocorre em atividades extracurriculares bem conduzidas, desenvolvem habilidades cognitivas, emocionais e sociais essenciais para o sucesso escolar e o bem-estar infantil. Mas, para que os efeitos positivos aconteçam, é preciso garantir que haja espaço em branco na agenda.
O brincar livre tem um papel fundamental no desenvolvimento global das crianças, inclusive na aprendizagem. É ali que elas escolhem, planejam, experimentam, resolvem problemas e criam narrativas”, lembra Adriana Biasotto.
Como você percebeu, com equilíbrio, as atividades extras dos pequenos deixam de ser peso e voltam a ser o que realmente importam na infância: uma chance de experimentar o mundo, descobrir talentos, criar memórias e, acima de tudo, se divertir.
Fonte: Crescer






















