Pandemia, cidade apartada: escola-socialização x terror de tiros na moradia
É Criança igual. A que está no centro da polêmica da volta presencial à escola, que neste momento é uma preocupação para os pais e especialistas em educação, excetuando-se os professores que não são chamados a opinar. A que está aterrorizada pela violência dos tiroteios onde ela mora. Para esta, nenhuma preocupação com a sua socialização e sua saúde mental, alegações do discurso de necessidade de volta às aulas presenciais.
Escola: espaço de socialização ou aquisição de conhecimento? Parece que a socialização tomou a primazia na escolaridade. A atenção à saúde psicológica da Criança, é muito bem-vinda. Mas sabemos que muito da pressão de pais para que Crianças voltem à escola, deve-se a eles mesmos. Também legítimo. Não é nada fácil, nem saudável, ter crianças em idade de expansão, inclusive psicomotora, encerradas em espaços fechados sem suas brincadeiras de amplitude e de contatos corporais, e que são indispensáveis a seu desenvolvimento. Esta qualidade de convívio que está sendo oferecido para as crianças voltarem à escola é de faz de conta. Para a criança que sempre vê com as mãos, faz parte de sua imaturidade e de seu desenvolvimento, olhar de longe, brincar de longe, não levar objetos e mãos à boca, não ter o corpo a corpo com outras crianças e com as professoras, é algo que traz uma estranheza e não satisfaz suas necessidades infantis. É, pelo menos, ingênuo pensar que a escola é local seguro para a transmissão do vírus. Estes hábitos naturais da criança fazem com que sejam vetores de transmissão, tanto para os adultos da escola, quanto para os adultos da família. Importante lembrar que a população técnica da Educação Escolar é composta por pessoas que têm saúde carente, por vários motivos, têm comorbidades, são de alta circulação, (professores dão aulas em várias escolas para ter algum sustento), as jovens, muitas estão grávidas, e em casa além dos adultos pais, habitam a mesma casa os idosos avós, muitas vezes. E, temos que considerar que há uma forma infantil de covid-19, pouco frequente e ainda pouco estudada. Não estou, com isso, defendendo a permanência da criança dentro de casa, muito menos negando os problemas que lhe são causados por este isolamento. Estou incluindo a ida “meia bomba” à escola, que se tornou sinônimo de socialização, tendo sido abandonado seu propósito de transmissão de conhecimento. Este, relegado a segundo plano.
Seguindo a invisibilidade do Apartheid em que vivemos, aqui no Rio de Janeiro, tivemos ontem, ao despertar do dia, notícias de intensos tiroteios em mais de oito favelas. Relatos de crianças aterrorizadas, choros e gritos engolidos, balas nas paredes ao lado das caminhas e dos berços. Mas, para estas crianças a polêmica da socialização indo à escola não existe. Elas não podem sair de casa. E algumas já foram atingidas dentro de casa mortalmente com um tiro de fuzil. A aquisição do conhecimento, tão pouco, não tem prioridade. Fica para depois, se conseguirem escapar das ‘balas achadas’. Podemos assegurar que estas escolas que não têm água, que não têm cadeiras para todos, muitas quebradas, que não têm banheiros usáveis, estarão seguras quanto à transmissão do vírus?
Sem esquecer da alta densidade demográfica dentro das casas precárias e carentes de vários itens de dignidade humana. O mecanismo de negação de nossa impotência usando o desvio de propósito da escolaridade, também serve para negar a impotência pelo fracasso social. O processo de regressão civilizatória que permitimos com omissões de muitos e ações de alguns nos empurrou para esta situação que estava sombreada e a pandemia escancarou e agravou.
Polemizamos sobre voltar ou não à escola, presencialmente, sem considerar que o simulacro de socialização é um cenário de papelão na vida da Criança, que vai continuar interditada na sua espontaneidade, na sua maneira de brincar, que vai continuar frustrada no seu Direito à infância. E, enquanto polemizamos sobre necessidade de socialização, negligenciamos a qualidade da transmissão de conhecimento. Os professores não foram formados para enfrentar as difíceis questões deste vírus. Nossa tendência, mais uma vez, é tampar o sol com uma peneira, para aquilo que imaginamos, equivocamente, ser mais fácil de “resolver”. O Apartheid, fica para depois. Os tiros ecoando na mente de milhares de Crianças, parece que não trarão sequelas. Negamos.
O problema de um lado e de outro, de uma criança e de outra, é imensamente maior do que nossa cegueira deliberada nos permite ver. Precisamos ter muito mais maturidade para admitir nosso fracasso e assumir, sem recortar só um pedacinho para o fazer de conta que estamos solucionando, nossa impotência diante do que as Crianças estão passando. Talvez, estejamos num ponto crucial de mudança de paradigmas. O que é Educação? O que é Solidariedade? O que é socialização? O que é Respeito pela Dignidade Humana de todas as Crianças? O que é o popular e desgastado conceito de trauma na mente de uma Criança?