As falhas e carências no desenvolvimento motor da criança
Quando ocorrem as falhas ou carências de cuidado de qualidade, porque traz em seu bojo também o afeto, o desenvolvimento motor fica comprometido
No último texto, Edição 338, falamos sobre o processo de aquisição da motricidade. Quase toda esta aquisição é visível, constatamos o progresso do sentar, da marcha, da pinça fina. Mas é comum que nos escape, e também escapou do texto anterior, a aquisição motora dos músculos e nervos implicados na deglutição, que também será compartilhada para a aquisição da linguagem.
Se nascemos com o reflexo de sucção que nos garante a nutrição pelo leite materno, o alimento pastoso e depois o sólido só devem ser oferecidos aos bebês depois de iniciado o processo gradativo de maturação do sistema digestivo, e, em sintonia, a maturação de músculos e nervos internos da boca. Assim, temos uma verdadeira acrobacia para a deglutição e, logo, para a linguagem.
A motricidade que permite a deglutição implica 26 músculos e um grande número de neurônios motores e sensitivos nesta tarefa. Coordenar todos obtendo o tento, engolir ou falar, requer esforço e dedicação da criança e de sua cuidadora. O olfato e o gosto começam a fazer parte da deglutição, e as papilas gustativas iniciam o esboço de sua função. É na repetição que o bebê vai se aprimorando. Toda a maturação neuronal, que sustenta a motricidade, se faz por exercícios simples das aquisições anteriores.
Uma criança bem maternada percorre este complexo processo e seu desenvolvimento será saudável. No entanto, quando ocorrem as falhas ou carências de cuidado de qualidade, porque traz em seu bojo também o afeto, o desenvolvimento motor fica comprometido. Por negligência, temos consequências que são sustentadas pela identificação com a cuidadora, ou cuidador negligente, ou seja, a criança passa a ser negligente com ela mesma e a não investir nas novas aquisições e em autocuidados. Por maus-tratos, a criança passa, também por processo de identificação com o/a cuidador/a, a se maltratar. Há uma consequência nefasta que chamo de “criança de alto risco”, quando ela está sempre se machucando, se colocando em riscos de média e grave consequência. São aquelas que estão sempre com fraturas, cortes, escoriações por quedas perigosas.
Por outro lado, a deficiência ou ausência da quantidade de atividade física que é necessária para que ocorra o bom desenvolvimento motor, é responsável por uma debilidade deste desenvolvimento. Funções importantes são frustradas parcialmente. Correr, pular, testar os limites do corpo, servem de exercício para a aquisição da imagem corporal que é recheada pela autoestima saudável.
Se a criança passa mais horas sentada com um aparelho eletrônico nas mãos, ela está “brincando” de estátua de seu próprio desenvolvimento. A brincadeira de estátua prevê movimentos rápidos em espaço livre e ao som da ordem “estátua”, ela deve frear todo o corpo, se conter, e permanecer parada. Esta capacidade é de grande importância para sua motricidade porque lhe dá a competência de dominar o corpo. Sentada como uma estátua, mexendo, repetida e rapidamente, dois dedinhos, não lhe fornece nada para sua competência motora, não há aquisição.
Outra falha de graves consequências é a violação do corpo ocasionada pelo abuso sexual. O corpo é nosso único bem inalienável. O abuso sexual destrói esta posse que nos dá a noção gradual de identidade corporal. Sem permissão, o corpo violado se torna vergonhoso, sujo, e é repudiado pela criança. Esta atitude de rejeição perdura, e é encontrada no adolescente, no jovem, no adulto, no idoso.
O desejo de se livrar deste corpo testemunha, o corpo que sabe, que participou, que deixou um caldo de culpa, muitas vezes é a tentativa de alcançar um pouco de paz. Mas, como se livrar do corpo tão odiado? A automutilação aparece como o ponto de conexão entre a vida e a morte. Ela traz a sensação de que se está “matando” o corpo, o poder de aprofundar os cortes, o sangrar até morrer, mas, também, o sangue como vida embaixo da pele. Em momentos insuportáveis de desespero, o suicídio acomete a criança ou adolescente, como perspectiva de libertação da dor psíquica e do ódio a este corpo violado. A identidade corporal, então, é, letalmente, autoatacada.