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Mais uma Lei Jabuti, a cortina de fumaça da legalização dos jogos de azar — Parte II

Entre nós, terra brasilis, o fluxo é invertido. Nas sociedades, em condições de não excepcionalidade, a lei surge por uma necessidade de regulamentação de um comportamento social que vem sendo praticado. Aqui, salvo raras exceções, quase todas referentes à Mulher, um grupo apresenta uma lei e cria-se, então, a necessidade pelo lobby e pelo marketing, aparecendo então o comportamento, já escorado na “lei” do tal grupo que busca um interesse particularizado.
É, no mínimo, curioso ver nos artigos, diários, defensores da legalização dos jogos de azar, a alegação sedutora de que os impostos arrecadados se verterão para a Educação e a Saúde, alguns ainda acrescentam a Segurança Pública. Não sei se rio ou se choro. Verbas destinadas à Educação e à Saúde têm apresentado reduções escandalosas e comprometedoras de qualquer planejamento que tenha razoabilidade. E, ainda, mesmo o pouco que foi destinado, em 2020, nem foi usado completamente, num ano de educação a distância, em que um enorme número de estudantes não tinha computador, celular ou internet que garantisse uma só aula. É a Evasão Escolar Institucional, promovida pelo próprio Estado. O investimento em Educação e Saúde vem sendo diminuído, mesmo na situação de crise que atravessamos. E não é por uma questão econômica. O valor maior atual é a determinação taxativa de eliminação de quem contradiz, perdeu-se o brilho da reflexão. Neste caldo, a escolaridade, enquanto capacitação de etiologia, probabilidades, efeitos possíveis, do exercício do raciocínio lógico hipotético dedutivo, até atrapalha.
Então, a despeito do desinvestimento de verbas previstas por lei orçamentária em Educação e Saúde, como fazer com que impostos, os que forem pagos, venham das Casas de Jogos de Azar vão chegar à Educação e à Saúde. Soa contraditório, aliás, financiar estas áreas com dinheiro vindo de doenças de pessoas, posto que, o que sustenta um cassino ou um caça-níquel é a compulsão, uma doença progressiva que destrói o jogador. Moralista? O dinheiro não é sujo do sangue de muitas famílias? Talvez, o fim passe a justificar os meios. A realidade da degradação de dependentes de cocaína, craque, maconha, alucinógenos vários, medicamentos, jogos de azar, entre outros patógenos, se expande e atinge toda a família e, muitas vezes, amigos também. O alcoolismo, não incluído nessa lista, mesmo legalizado, continua a fazer estragos e demolições em seus portadores. Temos muito pouca oferta de tentativa de recuperação e tratamento para estes portadores destas compulsões, que não consegue contemplar a todos os necessitados. Como o cocainômano que arranca a porta da casa e leva para a boca para trocar por sacolés do seu pó, o jogador aposta e perde a casa, para além da porta, onde mora a família.
Sobre o jogador, é preciso descrever alguns pontos de sua personalidade. Na maioria das vezes ele tem um traço de preferência pelo isolamento, isolamento afetivo, isolamento social, isolamento para um mundo dele onde devaneia com o sempre esperado momento de “quebrar a banca”. Para ele, sorte e azar são os principais regentes da vida. Seu pensamento mágico, fase normal da infância, ficou cristalizado e continua vigorando, mesmo que ele consiga delimitar uma área para ele, e consiga preservar. O gosto e o hábito do jogo, como todas as dependências e, como todos os quadros psicopatológicos, têm múltiplos fatores inclusos. No entanto, há especificidades neste tipo de compulsão. É importante, portanto, observar algumas características do perfil do jogador que é dependente, em qualquer grau.

Em 2018, a legalização de jogos de azar foi rejeitada pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) (Foto: Roque de Sá/Agência Senado)

A atração imperiosa pelo devaneio do ganhar faz com que o indivíduo apresente uma tendência ao alheamento marcante. Ele dedica muito tempo ao seu ensimesmamento. Assim, frequentemente, é alguém que tem no isolamento um alojamento que faz uso. Pouco sociável, costuma estender o comportamento que tem na mesa de jogo para suas relações afetivas e sociais. Ou seja, o jogador dependente não se adapta a fazer turismo, a dedicar um tempo em socialização. Ele repete a mesma conduta necessária à barreira fisionômica para que os parceiros de mesa não percebam seus blefes. Isto faz parte do jogo. O único “turismo” que ele pratica é, quando se cansa, ir deitar por algumas horas. Nestes momentos, esse jogador costuma querer ser recompensado com prazeres sexuais prestados a seu corpo. Lembrando que as empresas de cassinos, já conhecendo este comportamento do jogador, oferecem o conforto de construir cassinos glamorosos em hotéis 5 estrelas, deixando a distância entre esses dois pontos, a mesa e a cama, por conta de um elevador, alguns minutos.
Mas a alegação lobista é de que a legalização dos jogos de azar traria um incremento substancial no turismo. Jogador não aprecia paisagens, nem monumentos ou museus. Ele viaja para jogar. E ainda, ele não aprecia também viajar com a família. Para ele, jogar é coisa séria, não é lazer. Não é de fácil sustentação esta segunda alegação, o incremento do turismo.
E chegamos à questão mais preocupante, a alegação do aumento de empregos. É preciso se debruçar sobre quem são os candidatos às vagas dos cassinos. São meninas e meninos candidatos, novinhas e novinhos, que são candidatos a servir os jogadores dependentes em suas necessidades enquanto jogam.
Continuamos na próxima semana com o combo do que o casco do jabuti esconde de mais grave.

Ana Maria Iencarelli

Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos.

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