Mortes misteriosas de onças-pintadas no Pantanal sob investigação
Por meio de coleiras de monitoramento, a Polícia Federal investiga a possível morte por envenenamento de dois desses icônicos felinos no Brasil
Sandro morreu quase um mês antes de seu corpo ser encontrado. Uma coleira de monitoramento por GPS levou os pesquisadores a seus restos mortais em uma área do Pantanal brasileiro conhecida como Passo do Lontra. Eles estavam monitorando a onça-pintada macho adulto há quase um ano quando a coleira os alertou de que o animal havia parado de se movimentar em maio.
As expedições à maior planície alagada tropical do mundo requerem planejamento e financiamento criteriosos, então apenas em junho os pesquisadores finalmente puderam ir a campo verificar o ocorrido e ficaram chocados com o que encontraram. Ao rastrear a coleira através de uma das mil propriedades agropecuárias da região, vasculhando a área que havia registrado as últimas movimentações de Sandro, encontraram outra onça-pintada — não aquela que monitoravam — morta no pasto.
A apenas 50 metros de distância estava Sandro, com a coleira ainda intacta. Não havia marcas em seus corpos — nenhum sinal de luta, nenhum ferimento à bala. “Eram duas onças saudáveis mortas próximas uma da outra”, afirma Antônio Carlos Csermak Jr., veterinário e pesquisador do projeto Reproduction 4 Conservation (“Reprodução para Conservação”, em tradução livre, ou Reprocon, grupo que monitora onças-pintadas. “Foi quando começamos a suspeitar que haviam sido envenenadas”.
Três dias depois, quando os pesquisadores retornaram com a Polícia Federal e agentes do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que fiscaliza o cumprimento de leis e tratados ambientais federais, identificaram o último ponto no GPS onde Sandro permaneceu por um período significativo, provavelmente se alimentando. A quase 100 metros da primeira onça-pintada, havia uma carcaça de boi. Ao redor havia outros 17 animais mortos espalhados: 14 abutres, dois gaviões-carcará e um cachorro-do-mato.
Csermak e seus colegas haviam ouvido há tempos que pecuaristas, frustrados com o gado morto por onças-pintadas, usavam agrotóxicos para tentar resolver o problema. Quando os pecuaristas encontram um de seus animais morto, eles o cobrem de veneno, imaginando que a onça voltaria para continuar se alimentando dele.
Os agrotóxicos suspeitos de terem sido utilizados possuem carbofurano como princípio ativo, uma neurotoxina tão venenosa que foi banida ou amplamente restringida no Brasil, Canadá, União Europeia, Austrália e China, e seu uso é proibido em plantações de alimentos nos Estados Unidos. A equipe do Reprocon e autoridades brasileiras suspeitam que o veneno está sendo contrabandeado pelas fronteiras sem fiscalização entre o Pantanal brasileiro e o Paraguai e a Bolívia. Mas nunca houve provas — até agora.
Devido à coleira de monitoramento de Sandro, foi possível encontrar seu corpo e coletar amostras de tecido — prováveis evidências de um crime. Pela primeira vez, a Polícia Federal e o Ibama investigam a morte por envenenamento de duas onças-pintadas no Pantanal.
Acredita-se que aproximadamente metade das 170 mil onças-pintadas ainda existentes na natureza estejam no Brasil. Com uma população aproximada de dois mil indivíduos, o Pantanal tem uma das maiores densidades de onças-pintadas do mundo.
As onças-pintadas estão classificadas na Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN) como quase ameaçadas de extinção, com uma população cada vez menor. A expansão do desmatamento para abrir espaço para atividades humanas, como a pecuária, eliminou ou fragmentou os habitats das onças-pintadas, deixando suas populações isoladas e dificultando sua reprodução. Uma área de distribuição menor implica menos acesso dos felinos às presas, os quais ficam sem opção a não ser recorrer ao gado para sua sobrevivência. E quando atacam o gado, os pecuaristas geralmente retaliam por qualquer meio disponível.
Renato Raizer estava com o Reprocon quando o grupo colocou pela primeira vez a coleira de monitoramento em Sandro. Ele também esteve presente quando encontraram o corpo da onça-pintada. Pecuarista que mantém uma criação de gado com o pai há 12 anos, ele afirma que nunca mataria uma onça-pintada, embora perca cerca de 50 animais para as onças todos os anos (marcas de garras no pescoço de um boi e marcas de mordidas no crânio são sinais de ataque de onça).
“Não tem muito o que fazer”, conta ele. “Se a propriedade é pequena, talvez seja possível construir um cercado para manter seu gado durante a noite. Mas o que fazer se houver mil, duas mil, 15 mil, 80 mil cabeças de gado? Você apenas arca com a perda. Pode ser uma propriedade minha, mas também é o lar das onças”.
Mas nem todo mundo pensa assim. Antes de ser tomado pela pecuária, o pasto nativo onde Sandro e os outros animais foram encontrados era um ponto turístico. Pessoas de todo o mundo visitavam o local, na esperança de ver uma onça-pintada na mata. E geralmente conseguiam. Sua localização às margens do rio Miranda significa que atraía mais onças-pintadas do que a maioria das propriedades da região.
Gian Peralta, guia de turismo de animais silvestres, alugou a propriedade entre 2012 e 2019, antes de ser comprada por seu atual proprietário. Enquanto trabalhou na região, os negócios iam bem, afirma ele. Todos os dias ele avistava duas ou três onças. Às vezes, ele as atraía usando um instrumento que imita os sons de onças ao procurar por um companheiro. Outras vezes, não era necessário. Eram facilmente avistadas, descansando na margem do rio.
Ele percebeu que havia algo errado no ano passado. “Quando segui pela estrada de terra por onde as onças sempre passavam, não vi mais nenhuma pegada”, prossegue Peralta. Atualmente, ele continua trabalhando nas proximidades, ainda usando o rio Miranda como meio de transporte, mas Peralta conta que tem sorte quando vê uma onça por dia. Geralmente passa vários dias sem avistar nenhuma.
Ao deixar a propriedade em 2019, ele alertou o antigo proprietário para não vendê-la ou alugá-la para alguém que a utilizasse para a pecuária, mas ele não seguiu seu conselho. Peralta revela que assim que ouviu falar de onças-pintadas mortas, sabia que havia sido naquela região.
Assim que a história chegou ao noticiário, começaram os rumores. Alguns moradores e pecuaristas afirmam ter visto mais nove onças-pintadas mortas na propriedade onde Sandro foi encontrado. Outros dizem que havia sete.
Mas a Polícia Federal executou um mandado de busca na propriedade apenas em 5 de agosto, quase dois meses depois que as onças foram encontradas. Como o caso havia sido amplamente divulgado, segundo Claudinei Santin, o agente que chefiava a investigação, a polícia tem certeza de que os proprietários e funcionários sabiam de sua chegada.
Não havia nenhuma evidência de outros animais mortos na propriedade e nada para provar a presença de agrotóxicos com carbofurano. A polícia apreendeu os telefones celulares do administrador e locatário da propriedade que, segundo Santin, é o principal suspeito.
Um mandado de busca na casa do suspeito em Campo Grande também não revelou nada. A polícia não conseguiu revistar os aposentos dos dois funcionários do suspeito porque já haviam se mudado para trabalhar em outra propriedade em uma área mais remota do Pantanal, à qual a polícia não teve acesso.
Uma análise de amostras de tecido das onças está em andamento, embora a Polícia Federal acredite que os testes provavelmente não detectarão o carbofurano devido ao estado de decomposição dos animais quando foram encontrados. No entanto a polícia tem certeza de que os animais foram envenenados.
“Devido aos insetos mortos encontrados na carcaça bovina e à distribuição dos animais mortos no local — quanto menor o animal, mais perto morreu da carcaça bovina — a equipe forense da Polícia Federal concluiu que os animais morreram por envenenamento da carcaça”, informou a nota da Polícia Federal.
E embora esta seja a primeira investigação oficial de envenenamento de onça, Santin revela que foram “alertados de ocorrências semelhantes em outras propriedades no sul do Pantanal no estado de Mato Grosso do Sul”.
Matar um animal em extinção e importar e utilizar uma substância tóxica proibida são passíveis de pena máxima de reclusão de cinco anos. “As maiores dificuldades na investigação desse tipo de caso são a distância, extensão, isolamento e dificuldade de acesso às propriedades da região”, explica. “E, neste caso, só descobrimos o envenenamento e a morte desses animais porque uma onça-pintada estava sendo monitorada com uma coleira de telemetria por GPS”.
Para outros, como Raizer, as coleiras possuem outras vantagens além da investigação de crimes. Elas também podem dissuadir pecuaristas — por temerem possíveis repercussões judiciais — de envenenarem os animais.
Fonte: National Geographic Brasil