Comportamento & Equilíbrio

Dia das Crianças — Parte II

Quantos milhares de Crianças morreram de fome no Dia da Criança? Isso é bárbaro

Eram dois meninos do Povo Ianomami. Um tinha sete anos, o outro, nove. Morreram afogados. Estranho acontecimento, que não teve nenhuma repercussão na mídia. A verdade é que os meninos estavam tomando banho no Rio perto da aldeia, e foram mortos pela draga instalada para a extração ilegal de minério. Submersa para aspirar o fundo do Rio, a potente draga aspirou os dois meninos. Muito provavelmente, o “dono da draga” não permitiu que esta tragédia de ilegalidades em cadeia se tornasse midiática.
As ocorrências com povos nativos, aliás, não encontram espaço nos noticiários, haja vista a presença de mais de seis mil indígenas em Brasília, que ocupou uma borda pequena dos informativos e, menor ainda, dos comentários jornalísticos. Nem se soube muito do resultado da votação do Supremo.
Do mesmo modo, não teve eco a morte de um grupo de 30 crianças Ianomamis, de menos de cinco anos, de fome. Mas, para as Crianças urbanas a situação não está muito diferente. Surgiram as Crianças catadoras de ossos nos lixos dos grandes açougues e supermercados. Quantos milhares de Crianças morreram de fome no Dia da Criança? Isso é bárbaro. Não vou discutir as motivações irracionais que embalam a ausência de Políticas Públicas de dignidade, que pudessem garantir a segurança alimentar das nossas Crianças. TODAS.

O nosso lixo é a comida deles (Foto: Assuero Lima)

Gostaria de sair da esfera dos políticos, para pensarmos o “polítikos” em cada um de nós. Falta vontade política em cada um de nós. A polis, a cidade-estado teve início no Século VIII a.C., na Grécia, atingindo seu auge nos séculos VI e V a.C. Na ágora, praças, espaços abertos, os cidadãos conviviam, comercializavam os produtos agrícolas, e resolviam as questões da coletividade. Esse foi um dos fundamentos da democracia.
No entanto, o Poder sempre foi uma cobiça para o ser humano. O Poder é egoísta. A ideia de coletivo precisa ser sustentada pela maturidade, pela desistência do egoísmo, o que vem se mostrando um enorme obstáculo a ser superado, ao longo de todos esses séculos vividos. E a vocação para ditador/imperador sempre atraiu alguns, enquanto muitos se sentem atraídos pela posição de dominados. Essa combinação, dominador-dominado, incluindo uns dominados que fazem a manutenção do dominador, tem garantido a permanência na não-coletividade. Parece que ter alguém “forte”, que dá a sensação de mantenedor, satisfaz uma grande parcela de indivíduos que preferem ficar nessa posição infantilizada. Daí a dificuldade de responsabilização social e de cidadania. Essa não responsabilidade fornece uma ilusória sensação de permanência na infância, período em que há sempre alguém que olha por nós. Esse estreito corredor do Poder tem papéis muito definidos. Aquele que detém o Poder, chefe/dono/ditador/líder, e, até em certos casos, o “dono de uma votação”, exerce a tirania prevista e esperada pelos seus súditos/dominados.
Esse “casamento”, opressor/oprimido, vem se repetindo, independente de todo o corolário jurídico, por vezes, belíssimo. Tudo está muito bem previsto na letra da lei. Mas, quem cumpre a Lei? Ela é interpretada das mais diferentes maneiras, até de ponta a cabeça. A lei de alienação parental é emblemática nisso. Ela traveste a vítima em culpada, entregando a criança estuprada ao seu estuprador, e punindo a mãe que denunciou um abuso intrafamiliar incestuoso.
Se pensarmos nos dois meninos assassinados por uma draga de mineração oculta no fundo do Rio onde nadavam, certamente, a culpa foi deles. Ou ainda, e muito provavelmente, da mãe negligente que deixou os meninos sozinhos na água. Afinal, é cada vez mais comum que a vítima seja julgada como culpada. E, com dolo. A leniência com os mais diversos infratores e criminosos, nos levam à cena de uma Cultura de Transgressão generalizada.

O ancião Aruká Juma, com idade entre 86 e 90 anos, levou para a morte a memória viva de sua etnia. Morreu de covid. Tão vulnerável quanto os meninos, tão negligenciado também. Será que alguma responsabilização será demandada? O futuro e o passado são desprezados não só nos Povos Originários. É uma generalização que já não nos provoca indignação, tamanha sua incidência.
A dor da morte de Crianças, a dor da morte de um acervo vivo, na aldeia, na periferia, na favela, já não importam. A dor de não ver a mãe no dia da criança porque está proibido por uma lei que se baseia em termo inventado por um pedófilo que enriqueceu defendendo outros pedófilos, não importa. Ser, traiçoeiramente, aspirado por uma draga potente que invadiu seu habitat para explorar, ilegalmente, o ouro do fundo do rio, não faz sentido para as duas Crianças que estavam vivendo as alegrias de sua infância.
Como a “bala perdida” que acha a cabeça da menina de seis anos na porta de sua casa, como o menino três anos que é estuprado em seu quarto pelo seu pai, será que conseguimos nos colocar no lugar dessas Crianças? Como será ser dragado para o fundo da água durante um divertido banho?
Dia das Crianças. Sem chance de defesa.

Ana Maria Iencarelli

Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos.

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