Comportamento & Equilíbrio

Estupro de Vulnerável

A palavra numa denúncia não vale nada porque a mentira sentou-se ao lado, sendo dita 99 vezes, aquele nazista afirmou que falando uma mentira 100 vezes, ela vira verdade

Peço licença para interromper a série sobre o crescimento da Criança. Continuaremos na próxima semana, com mais alguma coisa sobre o desenvolvimento cognitivo, passando ao desenvolvimento da linguagem. Mas urge que possamos refletir sobre a barbárie que conseguiu uma indignação com enorme comoção social. Mais uma vez nos indignamos!
Da Mulher desacordada na sala de parto, à Criança em sua casa: uma equação. É preciso entender o conceito de vulnerabilidade. Não se trata apenas de uma fragilidade muscular, essa está sempre presente, mas também da incapacidade de reação. Essa incapacidade pode ser transitória, por um bloqueio produzido por um elemento externo, como no caso das parturientes mantidas inconscientes pelo anestesista, pode ser por um bloqueio interno, quando há uma paralisia de reação produzida pelo medo, pela intimidação, pela opressão. Em Crianças, a vulnerabilidade se dá pela precariedade do desenvolvimento cognitivo ainda em formação, o que deixa a descoberto um código moral ainda muito rudimentar. Em Mulheres adultas acontece também essa paralisação pelo medo. Quando falta empatia no entorno, essa vítima é acusada de permissiva.

Médico é preso por estupro de paciente grávida (Foto: Reprodução/Redes sociais)

No caso que ganhou espaço midiático e que nos horroriza a todos, a condição da vítima se assemelhava à condição cadavérica, ou seja, havia uma equivalência de necrofilia que deixava o abusador como total dono da Mulher, excessivamente, anestesiada. Sem nenhuma possibilidade de movimento, essa Mulher fugiu, completamente, do jargão social de que seria culpa dela, da saia curta, do decote, do lugar em que estava, da hora que estava fora de casa. São essas as desculpas esfarrapadas mais frequentes que são atribuídas para acobertar o estuprador, e que imprimem mais violência sobre a vítima. Ela é a culpada por ter sido estuprada.

Numa sala de Centro Cirúrgico para ser realizada uma Cesariana, na maioria das vezes, estão presentes sete pessoas. Chama-me atenção que somente as enfermeiras e técnicas tenham estranhado e observado um comportamento anômalo do anestesista em questão. Todo Obstetra e todo Neonatologista sabe da importância para mãe e bebê da “Hora de Ouro”, recomendada pela Organização Mundial da Saúde. Esse tempo que deve ser dedicado à facilitação do encontro entre mãe e bebê, que favorece a amamentação, o vínculo afetivo, previne a depressão pós-parto. Por que todos esses médicos que realizaram todas essas cesarianas em que esse anestesista apagava essas mães, nada viram, nada falaram? Será que nunca observaram nada? Ou aceitaram na omissão? Só as enfermeiras viram os movimentos pélvicos para frente e para trás do anestesista por trás da “cabaninha” que ele armava? E quando ele violava a lei e não permitia a presença do acompanhante, por que os médicos permitiam? Ele chefiava a sala por que? Não é comum o anestesista ser o “dono” de uma sala de cirurgia.

Criança de 11 anos e bebê foram liberados do hospital e voltaram para casa de acolhida (Foto: Reprodução/TV Cabo Branco)

Outro ponto da leniência de muitos é a restrição imposta pela direção do hospital depois de receber a denúncia do grupo de enfermagem. O anestesista foi chamado à direção que lhe impôs que não poderia mais ficar sozinho no ato de anestesiar, que passaria a ser auxiliar de um outro anestesista. Será que fazer uma restrição desse pequeno tamanho diante da enorme atrocidade que vinha cometendo, seria suficiente? Seria uma punição proporcional e uma garantia de não mais se repetir?
A palavra de enfermeiras mulheres, havia, parece, só um enfermeiro no grupo de pessoas responsáveis, denunciando o comportamento cruel de um médico homem, não foi escutada. Fica nítido o descrédito na Mulher. Foi necessário gravar o vídeo horripilante, papel investigativo, para que as primeiras providências fossem tomadas. Denúncias de violência sexual só são levadas a sério acompanhadas da devida prova material. A palavra numa denúncia não vale nada porque a mentira sentou-se ao lado, sendo dita 99 vezes, aquele nazista afirmou que falando uma mentira 100 vezes, ela vira verdade. Hoje, estamos bem além disso, temos uma nova invenção, a “pós-verdade”, termo onde cabe tudo, tudo. Assim, muito se pede pela denúncia, mas, a investigação e a prova ficam a cargo da vítima ou de quem toma as dores dela. Denunciar hoje, é provocar uma grande avalanche sobre si.

Descobre-se, (?), que esse anestesista era um criminoso em série. Quem estuda e conhece estupradores, em especial os intrafamiliares, sabe que todos repetem ad eternum os abusos sexuais. Não há estuprador de uma vez só, ou ex-estuprador. Já vimos passar na mídia, médico de Fertilização in Vitro, Pai de Santo, por exemplo, que estupraram dezenas ou centenas de mulheres.
O fato de as Mulheres vítimas desse anestesista não terem imagens de seus abusos, estavam desacordadas pelo excesso de analgésicos e sedativos, esses abusos não serão nunca esquecidos, e poderão produzir alterações psíquicas permanentes. Já com as Crianças, as imagens mnêmicas precisarão vir a ter um espaço de acomodação. A memória da Criança abusada passa todo o tempo em dois processos antagônicos: tentando esquecer para não lembrar, e tentando lembrar para não esquecer. Esquecer para diminuir a dor psíquica, mas, ao mesmo tempo, precisa lembrar sempre, estar alerta para não esquecer e soltar alguma pista do que acontece nos abusos. Não há sossego para ela.

Padrasto de criança que deu à luz é preso por suspeita de estupro (Foto: Reprodução/TV Globo)

Com as Crianças, dentro da família, essas coisas se repetem. A Criança é desqualificada e “profissionais” que se dizem especialistas, afirmam que o que elas estão descrevendo com detalhes são “falsas memórias”. Essa é uma tese que vem sendo difundida e que não tem comprovação científica. Uma Criança que descreve um ato libidinoso com detalhes e coerência, usando imagens compatíveis com sua faixa etária, e que além das palavras, desenha as cenas que vive, fala em linguagem corporal, brinca com bonecos repetindo os atos a que é submetida, expondo conteúdos que são impossíveis de serem memorizados, considerando-se sua etapa de desenvolvimento cognitivo, seu funcionamento é por raciocínio concreto, é desacreditada. A “interpretação” é de que a mãe colocou isso na cabeça da Criança, como se fosse possível implantar um chip em seu cérebro, contrariando a própria natureza do desenvolvimento infantil. Interessante é que essa tática de aludir “falsas memórias” só existe nos abusos sexuais intrafamiliares. Nunca se viu uma Criança ser acusada de estar tendo falsa memória quando se trata de um abusador extrafamiliar, o motorista do transporte escolar, o professor, o vizinho. Nesses casos a Criança goza de total credibilidade. Por que, se o fato é igual, há crédito para uma Criança e não há para a outra?

A Mãe que, cumprindo o Art. 13 do ECA, faz uma denúncia de estupro de vulnerável, tem escutado, com frequência, que volte para casa e faça um vídeo do abuso. É cruel, é mais uma violência uma mãe ser induzida a fazer uma filmagem de seu filho ou filha sendo abusado por uma pessoa que deveria protegê-la, que deveria ter responsabilidade com sua dignidade. Como no caso do médico na hora do parto.
A voz da Mãe não tem crédito. Afinal, toda Mulher é louca. Se faz uma denúncia contra um homem, ela tem que provar, tem que trazer a materialidade, de um crime quase perfeito que não deixa rastro. Todos sabemos. Mas somos lenientes. Também com as Crianças, não há estupro solo. Nem ex-estuprador. É um crime em série. Mas, se houve um grupo de enfermeiras cidadãs que rompeu o ciclo de opressão, e buscou o 4º Poder, a Mídia, quando é uma Criança que é abusada dentro da família, esbarramos no Segredo de Justiça. Nada pode ser divulgado, protegendo muito mais o agressor do que a vítima, uma Criança.

Torcemos para que esse horror que sacudiu tantas “certezas” infundadas, sirva para sairmos da negação desse mesmo horror dentro das famílias. Urge que se inaugure uma Cultura de Proteção GENUÍNA para todos os vulneráveis.
Hoje, mais uma Criança de 11 anos deu à luz a outra Criança. Estava há dois anos em cárcere privado, engravidou em casa, e teve o parto em casa, tendo, como é previsto, complicações, precisou ir para o hospital. A gestação e o parto em Criança dessa idade são riscos de morte. Há dois anos fora da escola, sem convivência familiar ou social, era abusada por um estuprador em série, muito, provavelmente, com ciência da mãe, conivente ou ameaçada. Ninguém estranhou.

Ana Maria Iencarelli

Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos.

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