Comportamento & Equilíbrio

E a Criança, quem olha por ela? — Parte I

A Criança está exposta, desamparada. A Judicialização da Infância é desastrosa. A começar pela discrepância dos tempos

Quem tem por obrigação profissional, que deveria ter compromisso, não olha por ela. A grande maioria se senta, confortavelmente, numa poltrona forrada de preconceitos, de termos fraudados com uma fina camada de verniz para parecer ter um parentesco com a Ciência, em atitude radicalizada por uma surdez deliberada. A cegueira também faz parte dessa espécie de esfinge de pedaços.
Não. A Criança está exposta, desamparada. A Judicialização da Infância é desastrosa. A começar pela discrepância dos tempos. O desenvolvimento é veloz, e o tempo da justiça é letárgico. São processos que demoram oito, 10, 14 anos. Onde fica a Infância? Onde fica o Direito de Ser Criança quando se é obrigado a obedecer ao Juiz, sem se conformar com aquela surdez. Por mais que a Criança expresse sua angústia, seu medo, sua dor em choro convulsivo de desespero explícito, ela não é considerada. Até dizer que ela é um fantoche da mãe, vale para praticar o Direito de um adulto em detrimento do Princípio do Melhor Interesse da Criança. Afinal, é alardeado por pessoa dita de “notório saber” que Criança não tem que ter vontade. É definida como Sujeito de Direito para constar, apenas.

Qualquer absurdo pode ser dito para manter a ilusão de justiça. Por indução produzida por laudos da mesma matéria infundada, ou por despreparo, que permite até indicação para tratamento psicológico e psiquiátrico compulsórios. Termos são alçados a conceitos, como se científicos fossem. Opiniões são tornadas teorias, sem passar por nenhum critério científico. Como se Operadores de Justiça pudessem julgar e promover retóricas como sendo Ciência. Não há compromisso com o bom senso, muitas vezes. Mas o Poder manda. E a Criança?

Judicialização da infância (Foto: iStock)

Essa relação de Poder é uma experiência vivida precocemente pela Criança que é judicializada. Quando pretendemos legalizar afetos, não dá certo. Não é possível enquadrar emoções, e afetos fundamentais. É ilusório que se possa medir, pesar, e punir sentimentos com leis que têm como finalidade que todos são iguais perante a lei. E que se pense que Criança tem uma deficiência de tal amplitude que nada do que diz tem valor.

Essa vivência de um Poder esmagador deixa como legado o sentimento concreto de desimportância. Muito nefasto e corrosivo na área das relações com os outros. O sentimento construtivo nessa fase da vida, enquanto se opera o desenvolvimento cognitivo, é a garantia de que ela importa. Mas, já amassada por maus-tratos e violências de tipos variados, a Criança perde a imagem natural de que a justiça é justa.

Estamos vendo uma proposta de Reforma do Código Civil que penaliza Mulheres/Mães que ousem denunciar abuso incestuoso e violência doméstica, e atropela leis de proteção à Criança, leis já existentes.

No livro “Ideias para adiar o fim do mundo”, Ailton Krenak, mais recente Imortal da Academia, nos convida a repensar nossa visão de mundo que insiste em separar o Humano da Natureza. Somos Natureza. Mas a Maternidade, um Direito da Natureza, está sendo, cotidianamente, ceifada. E, como fala esse autor, “há muito tempo não existe alguém que pense com a liberdade do que aprendemos a chamar de cientista”. Aliás, Ciência e cientista parece estar fora da moda. Talvez porque é necessário verificar, segundo critérios que prescrevem bem mais que rápidos cliques num teclado.

Enquanto escrevia esse artigo, vi de perto uma demonstração de Poder esmagador. Aqueles passarinhos que procriaram no nosso jardim, continuaram frequentando o ambiente de plantas. Eram os quatro, mas logo se juntaram mais de uma dezena. São 18, ou 19 agora. Brigam um pouco pelo alpiste que garantimos todos os dias. Há uma semana, apareceu um lindo gavião. Altivo, imponente, e belo, ficou por alguns instantes e se foi antes que eu conseguisse registrar a visita inusitada.

(Foto: Getty Images)

Ontem ele voltou, e acompanhado de um outro. Mirou num passarinho, se chocou com o vidro com força, pousou numa cadeira, parecia meio tonto, e foi embora levando seu companheiro de caçada. O passarinho escapou. Perdeu as penas da calda, mas sobreviveu ao ataque.

Cena de violência que me fez pensar. Transpor para a violência que “gaviões” investem contra nossas Crianças. A vulnerabilidade é o link entre passarinhos e Crianças. Tive a impressão que já havia assistido a ataques como esse. Entre humanos. Grandes e Poderosos contra Pequenos e Vulneráveis. Predadores são predadores, em toda a Natureza. Gostam mesmo é do prazer do Poder. Parece que perdemos o rumo quando abalizamos grandes inventando leis como álibis.

Vale lembrar que, ao longo da nossa História, sempre que um grupo quer se sentir mais à vontade, ele formata uma lei. A Colonização com extrativismo de materiais e cultura, era legalizada, assim como o Comércio de Humanos para a Escravidão, o Apartheid e o Holocausto, todas essas perversidades eram amparadas em Leis vigentes. Assim também a violência contra a Mulher e o abuso sexual contra a Criança são amparadas pela alegação de “mentira da mãe louca”. Então a lei que é provocada pela alegação de afastamento do pai, se volta contra a mãe, e a justiça afasta a mãe, e entrega a Criança ao seu agressor. É legal.
E a Criança, quem olha por ela?

Ana Maria Iencarelli

Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos.

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