Comportamento & Equilíbrio

E a Criança, quem olha por ela? — Parte III

Cabe perguntar, sim, para que servem as leis? E, a quem servem as leis? A vulnerabilidade da Criança, e das mulheres, é vilipendiada

E eis que mal tinha terminado os primeiros vídeos de orientação aos voluntários do desastre, as notícias de estupros de Crianças nos abrigos do Rio Grande do Sul, já fervilhavam. E, um detalhe foi acrescentado. A notícia falava que as crianças estavam sendo estupradas no âmbito intrafamiliar. Ou seja, os abusos sexuais incestuosos prosseguiram dentro dos abrigos. Tive acesso a um dado que aponta esse Estado como ocupando o segundo ranking em violência contra a mulher e a Criança. Os casos de estupro de Criança nos abrigos estariam então seguindo essa tendência dos números constatados?

Pode parecer absurdo e, para alguns, impossível, mas a maldade humana é ilimitada quando alguém quer sentir o prazer do Poder sobre o outro. E as ocasiões que aumentam o desamparo dos mais fracos são muito apreciadas pelos predadores. A opressão é muito atraente para as estruturas, ou esboços de estruturas, mais frágeis. O medo é o motor que opera esses comportamentos perversos. Medo de se sentir inferior ao outro, medo de ser oprimido pelo outro, medo de se constatar tendo medo. E contra esses medos, aparece uma “solução” mágica. Acobertar e negar o medo com uma sensação de onipotência tirada do oprimir um mais vulnerável. A vulnerabilidade traz a garantia do êxito na empreitada da opressão.

(Foto: iStock)

O mito de que a Criança esquece, é completamente sem fundamento. A Criança é um ser em desenvolvimento, com recursos psíquicos ainda limitados, mas ela sabe o que é certo e o que é errado. E sua memória é construída pelo que experimenta. Não há possibilidade de se “falar” instruções para que rejeite o genitor se isso não se constitui no que experimenta concretamente. É uma vergonha intelectual repetir esse outro termo sem comprovação científica, com o objetivo de desqualificar a voz da Criança para engrossar a ala da alienação parental. Se todas essas mães conseguissem tamanha proeza antinatural, deveríamos formar uma equipe de mães para resolver todos os problemas impossíveis da humanidade.

Assim como a corrupção intelectual, também vergonhosa, não tem sustentação científica. Afirmam até alienação parental inconsciente para retirar filho de mãe. Já exemplifiquei, em outra ocasião, que seria como punir alguém que tem um desejo inconsciente de matar um vizinho muito desagradável, e, por ter esse desejo, do qual ainda não tem consciência, recebesse uma pena de reclusão.

Assistimos incrédulos uma argumentação de alguém que frequentou uma faculdade de Psicologia, e defende que uma violência moderada, ou uma violência que não seja diretamente à Criança, não impede a execução de regime de Guarda Compartilhada, propondo uma “interpretação restritiva” da lei que tenta proteger a mulher e a Criança. “Interpretação restritiva” seria violar a lei 14.713/2023 que determina duas exceções, violência física e violência sexual, para a Guarda Compartilhada Compulsória, e que desconsidera todas as condições inadequadas para esse regime. Existem condições nocivas para o desenvolvimento saudável da Criança. A sugestão é que o juiz/a faça uma pergunta ao ex-casal, se existe a possibilidade de violência. É para perguntar, perguntar, ao agressor e à agredida se existe violência? Perguntar se há violência ao autor e à vítima? É inacreditável a tentativa de dissimulação que é proposta sob os auspícios do agente de justiça.

(Foto: iStock)

Cabe perguntar, sim, para que servem as leis? E, a quem servem as leis? A vulnerabilidade da Criança, e das mulheres, é vilipendiada. Crianças que sofrem abusos sexuais incestuosos, e/ou espancamentos com evidência em hematomas diversos, têm negada a Medida Protetiva de Urgência, sob a alegação do direito de visitação do genitor. Só se prende um agressor que descumpre uma Medida Protetiva se ele espancar ou matar a ex-mulher. Pensão alimentícia? Mesmo depois de seis anos sem pagar, não há nenhum corretivo para esse genitor que sonega o sustento do filho. Leis existem, muito precisas na letra.

A Cultura da Transgressão é alimentada, cotidianamente, em todos os estratos sociais. E, com ou sem consciência da atitude tomada, agentes de justiça auspiciam a transgressão. As mulheres da justiça parecem ter raiva das mulheres que chegam pedindo ajuda e cumprindo a lei, artigo 13 do ECA. Tenho a impressão que ver tão próxima a dor que passaram, todas tiveram histórias de opressão, de desqualificação, de misoginia, e se ocuparam só de passar pelas situações de injustiça, sem dar espaço para o devido tratamento dessas dores. O que torna insuportável a solidariedade, a empatia.

O medo de ser engolida pela dor da mãe que busca justiça, faz com que se arme contra a outra, assumindo uma atitude identificada com os agressores, para buscar a sensação de estar forte, longe, e muito acima, da despedaçada que chega com uma dor atual que acorda a dor adormecida.
E a Criança, quem olha por ela?

Ana Maria Iencarelli

Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos.

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