Comportamento & Equilíbrio

Criança hoje, Criança amanhã

Esta criança de hoje, a que, preferencialmente, desliza o dedinho, talvez apresente dificuldades de aprendizagem escolar e social

Texto publicado na Edição 325, em novembro de 2019

O que estamos fazendo hoje para que a criança usufrua de uma plenitude de desenvolvimento de capacidades biossocioafetivas civilizatórias, hoje e amanhã? Quem é a criança de hoje? Quem será a criança de amanhã?
Facilmente, desenhamos na nossa mente estes pequenos e pequenininhos, antes mesmo da aquisição da linguagem e da marcha, teclando, mexendo em celulares e computadores. E, caímos na ilusão de pensar que são muito inteligentes, sabem mais que os adultos, principalmente, os de duas gerações acima deles. Mas, o dedinho que desliza numa telinha não denota bom desenvolvimento cognitivo. Neste momento do desenvolvimento, no lugar de deslizar a ponta do dedinho, ele deveria estar treinando a preensão dos objetos na oposição do polegar ao indicador. Desta aprendizagem psicomotora, dependerá a destreza do lápis para a escrita, do bisturi para a cirurgia que salva a vida, do pincel para a arte de pintar.

Esta criança de hoje, a que, preferencialmente, desliza o dedinho, talvez apresente dificuldades de aprendizagem escolar e social. Social? Sim. O isolamento produzido pelo dedinho deslizante num tempo de aprender a seguir as primeiras regras sociais, sendo a primeira e principal a do “pode” e “não pode” fazer com o outro, o protocódigo da Ética e da Cidadania, será um retardamento ou obstrução desta fundamental aprendizagem. Este processo de aquisição vai se tornando cada vez mais complexo, partindo sempre da experiência, posto que, a infância é regida pelo raciocínio concreto que segue a lógica, também concreta neste período.

(Foto: Freepik)

A necessidade de cuidado que nossos filhotes têm, pela incompletude de várias estruturas cerebrais e suas funções correspondentes, faz com que haja a premência de um adulto que pratique, qualitativamente, este cuidado. Incapazes de sobreviver com independência, nascemos com duas fomes: a da nutrição e a do afeto. São os dois alimentos que garantem nossa permanência como seres vivos. A humanicidade será conferida pelo aprendizado da empatia que permitirá o respeito ao corolário das leis. E, se não nos tornamos humanos, nos transformamos em seres subanimais porque usamos nossa inteligência para a perversidade com os outros.

Durante a infância, a presença funcional da mãe, vínculo visceral, é fundamental. A boa maternagem alimenta o bebê de nutriente e de afeto/cuidado. A paternidade, função também fundamental, tem como principal função a introdução da terceira pessoa na relação inicial da díade mãe-bebê, trazendo a Lei. É o pai que, em busca da recuperação de sua parceira, promoverá o primeiro passo do bebê no sentido do crescimento psicológico, no sentido da autonomia.

Teoricamente, de maneira bem simplificada, este é o cenário básico, necessário ao desenvolvimento saudável da criança. Mas, a realidade nem sempre segue estas recomendações de promoção de saúde. São milhões de crianças que carecem deste padrão de saúde biopsicossocial.

Ocorre que, neste ponto, ficamos diante da criança de amanhã. Ou melhor, da criança que será consequência da criança de hoje que, adulto, não terá a função materna ou paterna bem estruturada porquanto, não fez parte de sua experiência de infância. Ou seja, não é portador de um modelo saudável para servir de parâmetro nesta rodada de papéis familiares.

Precisamos respeitar o processo de desenvolvimento em suas necessidades para proporcionar o mais pleno resultado possível. Mas, ocorre que, temos falhado neste ponto. Falhado como família, como sociedade, como Estado. Não estou me referindo apenas ao dedinho deslizante. Refiro-me à desobediência às garantias de proteção absoluta da criança escrita na nossa Carta Magna.
Inaugurando hoje esta Coluna, muito honrada com a oportunidade, comprometo-me a trazer as diversas situações de violação de Direitos que tem sido imposta às crianças de hoje, que interrompem de maneira devastadora o desenvolvimento normal e saudável dos pequenos e das pequenas.

Começaremos pelo sofisma que tem ocorrido, sistematicamente, quando uma mãe faz uma denúncia de abuso sexual incestuoso ou de violência doméstica. Ou ainda, quando uma mãe, por obrigação denunciava o não pagamento da pensão alimentícia da criança ou o comportamento de negligência incluindo o uso de álcool e drogas pelo genitor. Estas situações de zelo materno têm sido recebidas pelos Operadores de Justiça como o indício indiscutível de alienação parental da mãe. Este termo foi criado por um médico americano que fez apologia explícita em seus livros da pedofilia. Ele escreve: “as atividades sexuais entre adultos e crianças fazem parte do repertório natural da sexualidade humana, uma prática positiva para a procriação, porque a pedofilia estimula sexualmente a criança, torna-a muito sexualizada, fazendo-a ansiar pelas experiências sexuais que redundarão num aumento da procriação”. Isto está escrito por ele, R. Gardner, nas páginas 24 e 25 de seu livro True and False Accusations of child Sex Abuse (Verdadeiras e falsas acusações de abuso sexual infantil, em tradução livre). Oportunamente traremos as posições deste autor que “fundamenta” a lei da alienação parental. Aliás, somos o único País a ter uma lei baseada neste termo que não foi considerado científico pela Academia e nem pelas Associações Médicas e de Psicologia.

(Foto: Freepik)

O Sofisma dogmático se aloja no Silogismo que, aproveitando-se da difícil comprovação do abuso sexual de criança e adolescente, tem como terceira premissa: logo, é alienação parental da mãe. Esta foi uma instrução dada pelo próprio Gardner que orienta os pais que são denunciados por abuso sexual contra seus filhos. Esta é a maior ocorrência deste crime, o abuso intrafamiliar chega a números que variam nos estudos entre 75% e 85% da totalidade.

A “conclusão” de alienação parental tem uma celeridade ímpar na nossa Justiça. A criança é retirada do convívio com a mãe, e é entregue em cenas dantescas de busca e apreensão com a participação de policiais militares armados ao genitor suspeito do abuso. Esta verdadeira prisão para a criança, com choro, desespero, angústia, gritos, inaugura o afastamento total ou parcial da mãe, que passa a ser vista e tratada como elemento de alta periculosidade, sendo proibida de estar com o filho ou filha, sem a vigilância de uma terceira pessoa que cerceia toda a liberdade relacional da criança e da mãe.

A Privação Materna está instalada. Crianças de 1ª Infância são privadas dos cuidados maternos tão essenciais nesta etapa de seu desenvolvimento para sua Saúde Mental, como apontam as pesquisas de teóricos.
Estamos repetindo a tortura experimentada nos campos de concentração do Holocausto. Como naquele comportamento que embasou as atrocidades daqueles anos, uma lei ampara também este comportamento de perversidade da invisibilidade de crianças e mulheres, no obscurantismo do Segredo de Justiça.
Voltaremos ao assunto.

Ana Maria Iencarelli

Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos.

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