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TCU aponta que governo não monitora incentivos fiscais bilionários em tecnologia a empresas

Para tribunal, há falhas graves em monitorar benefícios da Lei do Bem o que pode representar rombo bilionário aos cofres públicos

Por Juliet Manfrin

Regulamentada no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em 2006, a Lei 1196/2005, conhecida como a “Lei do Bem”, está na mira do Tribunal de Contas de União (TCU) quase 20 anos após a implantação. Para especialistas, a incompetência e inoperância do governo em estruturar o sistema com cruzamento ágil e fiel de dados, além da não adoção de medidas estratégicas de combate a fraudes, corrupção e desvios revelaram deficiências que podem representar um rombo bilionário aos cofres públicos que vem se acumulando ano após ano, conforme foi apontado pelo TCU.
A “Lei do Bem” tem como objetivo incentivar empresas a investirem em pesquisa, desenvolvimento e inovação tecnológica por meio de benefícios fiscais. As principais vantagens incluem a possibilidade de dedução no Imposto de Renda e na Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) sobre os gastos com inovação, redução do IPI para a compra de equipamentos destinados à pesquisa e a depreciação e amortização acelerada de bens usados nesses projetos.

Para ter acesso aos incentivos, a empresa precisa estar no regime de tributação pelo lucro real e comprovar os investimentos realizados em inovação tecnológica. Na prática, o sistema tem falhado. O TCU diz que o total de riscos para os cofres públicos, somando os valores de possíveis irregularidades de 2018 a 2022, chegou a aproximadamente R$ 1,19 bilhão.

“Algumas empresas informaram à Receita Federal a utilização dos benefícios, mas não informaram ao MCTI [Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação], enquanto outras informaram tanto à Receita quanto ao MCTI, mas os valores comunicados aos órgãos eram diferentes. A diferença apontada nos dois casos pode indicar que os benefícios fiscais foram usados de forma inadequada, o que pode resultar na perda de arrecadação de impostos e prejuízo de cerca de R$ 1,19 bilhão”, alerta a Corte de Contas.  

Apenas em relação ao ano-base de 2018, o risco de perda estimada é de R$ 263 milhões, pois o prazo para cobrar o tributo devido expirou no início de 2025. “No total, 853 declarações empresariais foram identificadas como em risco de prescrição”, afirma o TCU. Além de rastrear falhas e corrigir erros, especialistas defendem a necessidade de penalização na estrutura do governo de quem errou , com foco na improbidade administrativa na gestão federal.

Se ficar provado que houve irregularidades no sistema causando prejuízo aos cofres públicos, o governo, em suas diversas escalas, pode ser responsabilizado de acordo com a lei de improbidade, o que pode levar, entre outras penalidades, à inelegibilidade de quem causou ou operou para causar o dano. No caso de um servidor de carreira, ele pode ser exonerado das funções”, salienta o especialista em Direito Público Márcio Nunes.

Para o professor de Engenharia e Cibersegurança Guilherme Neves, do Ibmec no Rio de Janeiro, que estuda e acompanha de perto há anos a “Lei do Bem”, pode haver duas vertentes que justifiquem os apontamentos do TCU: a de falhas humanas no lançamento de dados casada com a morosidade para checagem das informações. Neste caso, esses problemas ainda podem estar aliados à falta de um sistema integrado para lançamento e cruzamento dos dados. A segunda questão é que podem ter ocorrido fraudes propriamente ditas.

Pela experiência com consultoria a empresas do setor, o pesquisador avalia que o problema pode ter mais a ver com a incompetência e inoperância do governo em gerenciar um sistema com cruzamento e análise precisas das informações do que com golpes aplicados por empresas que poderiam se beneficiar com os incentivos. Mas isso coloca em risco o principal instrumentos de fomento à inovação no Brasil.

“Claro que existem pessoas que operam para cometer fraudes e aplicar golpes, mas acredito que neste caso é mais pela falta de implantação de um sistema integrado que monitore e cruze informações entre o Ministério da Ciência e Tecnologia e a Receita Federal. Para as empresas que podem ser beneficiadas é muito mais vantajoso investir os benefícios que a lei prevê, com retorno em inovação e tecnologia, do que sonegar, enganar ou burlar o sistema do governo”, opina.

A Gazeta do Povo procurou o Ministério da Ciência e da Tecnologia, mas a pasta não se manifestou até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto. A Receita Federal disse que “a decisão [apontada pelo TCU] será analisada pelas áreas técnicas” do órgão. “Preliminarmente, informamos que o tema objeto da auditoria do TCU já constava no planejamento da fiscalização para o ano de 2024, conforme Relatório Anual de Fiscalização 2023-2024”.

TCU aponta fragilidades na fiscalização e monitoramento da “Lei do Bem”
No acórdão do TCU da última semana há alertas sobre a falta de fiscalização, falhas graves no sistema de lançamento de dados e prejuízos provocados por problemas na aplicação e fiscalização da lei. Estes apontamentos atentam para:
Empresas usufruindo de incentivos sem prestar contas: 547 empresas declararam benefícios à Receita Federal, mas não informaram seus investimentos ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), totalizando uma renúncia fiscal de R$ 2,54 bilhões.

Diferenças nos valores informados ao MCTI e à Receita Federal: outras 306 empresas prestaram contas ao MCTI, mas com valores divergentes dos apresentados à Receita, resultando em um impacto estimado de R$ 954,7 milhões.
Risco de prescrição de créditos tributários: o tribunal alertou que, caso as irregularidades não sejam corrigidas, o governo pode perder o direito de recuperar os valores indevidamente concedidos.

Discrepâncias na folha de pagamento: um cruzamento de dados do TCU entre o MCTI e os registros do Ministério do Trabalho apontou que 5.985 pessoas tiveram valores declarados superiores aos registrados oficialmente, indicando um possível superdimensionamento dos gastos com pessoal. Essa prática pode ter causado um impacto de R$ 936 milhões.

Falta de controle e comunicação entre órgãos: o TCU também criticou a falta de integração entre o MCTI e a Receita Federal, que impede um acompanhamento eficiente dos incentivos concedidos. A ausência de um sistema estruturado de troca de informações entre os órgãos dificulta a detecção de fraudes e o cruzamento de dados sobre os reais investimentos das empresas em inovação.

O TCU também diz que o atraso na análise das prestações de contas tem sido um problema recorrente e identificou um acúmulo de 7.227 processos pendentes de análise pelo MCTI, com alguns casos demorando até 45 meses para serem avaliados.

É inconcebível que estamos falando de tecnologia e inovação, dentro de um ministério específico e que falha justamente no básico e essencial: no processo tecnológico para dar vasão, lisura, transparência além de proteger os recursos públicos”, avalia o consultor independente Luan Ramalho, mestre em sistema de informação.

Ramalho lembra que as possíveis fraudes podem descredibilizar um programa que é essencial à inovação no segmento privado, além de impedir o real acesso a quem precisa investir na expansão tecnológica. “O TCU diz que se pode estar diante de um rombo bilionário nos cofres públicos a partir de dados entre o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e a Receita Federal que não conversam, e, quando se cruzam, são divergentes. Acredito que possa ser uma ação estratégica, proposital para facilitar o processo de burlar o sistema e não gerar os dados legais e oficiais. De um lado o fraudador se aproveitando do sistema falho e do outro o governo inoperante em resolver o problema”, alerta o economista e analista de mercado Rui São Pedro.

Para o TCU, sem um sistema eficiente de fiscalização, há risco de os incentivos fiscais serem desviados para fins que não contribuem para a inovação tecnológica, reduzindo a eficácia da política, com fragilidade no controle e na gestão fiscal, dificultando a detecção de irregularidades o que pode estimular aumento da sonegação fiscal.

Como opera, na prática, a “Lei do Bem” de fomento à tecnologia e à inovação?
A “Lei do Bem” permite incentivos fiscais para empresas que realizam, ou deveriam realizar, investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) de inovação tecnológica. Em um dos dados mais recentes informados pelo governo federal, no fim de 2023, quase 3,5 mil empresas haviam sido beneficiadas pela lei.

Na ocasião, o governo disse que essas empresas tinham alavancado R$ 35,1 bilhões em investimentos no ano-base 2022, e que isso representava aumento de 29% na comparação com 2021. A Gazeta do Povo procurou o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação em busca de dados mais atualizados e indagou sobre as falhas apontadas pelo TCU, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.

“Em termos de materialidade, o volume de renúncias tributárias alcançou cerca de R$ 7,9 bilhões [estimativa relativa ao exercício de 2022], o que demonstra a relevância da política pública, sendo que esse valor tem aumentado de forma mais significativa desde 2017, assim como o número de empresas beneficiadas”, alertou o ministro Jorge Oliveira, relator do processo no TCU, que apura as suspeitas de fraudes.  

O objetivo da lei é permitir que empresas que operam no regime de lucro real deduzam imposto e contribuição e destinem parte dos gastos com atividades de inovação. O foco da “Lei do Bem” é estimular a inovação tecnológica no setor privado, tornando as empresas mais competitivas e incentivando o desenvolvimento de novas tecnologias no Brasil.

Como benefício, a “Lei do Bem” prevê:
✅Dedução de até 60% dos investimentos em P&D no cálculo do IRPJ e CSLL.
✅Redução de 50% do IPI na compra de máquinas e equipamentos para pesquisa.
✅Depreciação e amortização acelerada de bens usados em P&D.
✅Isenção de imposto sobre remessas ao exterior para registro de patentes e marcas.

Essa lei é considerada um dos principais instrumentos de fomento à inovação no Brasil, ajudando a reduzir os custos de pesquisa e incentivando a modernização da indústria nacional. Mas, como toda legislação, precisa de controle, fiscalização e este caso pode ser resolvido com certa facilidade quando falamos de tecnologia e inovação. Qualquer empresa de médio ou grande porte no setor privado opera em sistemas integrados de informação, o governo deveria ser o exemplo disso por já operar alguns sistemas assim”, reforça o pesquisador Guilherme Neves.

Inoperância, lentidão e a necessidade de rastreamento célere de fraudes
Outro a lembrar que existem tecnologias que conversam entre si em uso pelo próprio governo é o economista Rui São Pedro. Ele lembra do sistema integrado da própria Receita Federal para fiscalização tributária e cruzamento de dados fiscais. “Neste caso específico à “Lei do Bem”, parece que cada base trabalha ou recebe um dado para dificultar a fiscalização e o controle”, reforça. Para o economista, não se pode negligenciar nem negar a existência de fraudadores. Ele defende que esse grupo precisa ser rastreado e punido de forma rápida e exemplar.

Mas as falhas estruturais governamentais atrapalham uma análise rápida e apurada de quem está tentando ou fraudando o sistema. Se houvesse um banco ágil e fiel de dados compartilhados que funcionasse automaticamente, seria possível observar uma irregularidade sem esperar anos até que um servidor acesse o processo físico para analisar, intimar a empresa para prestar esclarecimentos ou cortar benefícios. Pode ser tarde demais”, destaca.

O analista Luan Ramalho avalia que o processo como está eleva as chances de fraudes constantes, perdas de orçamento público e impunidade.

Se um fraudador leva quatro, cinco anos para ser identificado ou nem é identificado, esse é um exemplo claro da inoperância do Estado e que o crime compensa”.

Para o pesquisador Guilherme Neves, não é razoável pensar que se demore, segundo apontou o TCU, até 45 meses para analisar alguns processos. “Não se pode pensar em um ser humano [funcionário público] fazendo isso manualmente. Se usar uma ferramenta que cruza as informações, inclusive para liberar ou reter valores dos incentivos para quem estiver com as etapas vencidas ou com falhas no processo, travaria o sistema para essa empresa automaticamente e evitaria danos”, reforça. “O que se precisa é que o governo adote mecanismos para aprimorar os controles, mas aí se estipula um prazo [pelo TCU] para as adequações e depois se estende o prazo e tudo segue como está”, afirma.

TCU diz que prestação de contas da “Lei do Bem” pode levar até um ano
Na tentativa de evitar novas perdas e melhorar a fiscalização da “Lei do Bem”, o TCU recomendou que tanto o MCTI quanto a Receita Federal implementem um sistema automatizado de cruzamento de dados para identificar irregularidades. “Todo esse processo é relativamente simples e poderia ser bastante eficaz. O governo e as empresas ganham em transparência e não na ineficiência do Estado”, afirma Luan Ramalho.

Diante do que se observou, o TCU determinou que o tempo de análise das prestações de contas seja reduzido para, no máximo, 12 meses. “O que ainda é elevado. Se o sistema fosse integrado e as informações conversem entre si, seria quase instantâneo. Um bom sistema pode gerar alertas automáticos quando houver inconsistências ou informações que não convergem”, segue Ramalho.

Para o TCU, é essencial que sejam adotadas rotinas de envio de informações entre os órgãos responsáveis pela fiscalização dos incentivos fiscais. O especialista lembra que a “Lei do Bem” é um dos principais mecanismos de incentivo à inovação no Brasil, mas sua efetividade está comprometida com as falhas na fiscalização, falta de monitoramento dos recursos concedidos e a demora de o governo rastrear irregularidades e punir responsáveis para reaver recursos. “Não por acaso, o TCU alerta que, sem ações corretivas urgentes, o governo federal pode enfrentar prejuízos bilionários”, alerta o analista.

Segundo Ramalho, isso também revela uma ineficiência na política de incentivo à inovação. “A falta de monitoramento e avaliação dos incentivos compromete a capacidade do governo de medir o real impacto da política sobre pesquisa e desenvolvimento. Empresas podem continuar recebendo benefícios sem comprovar adequadamente os investimentos, o que prejudica a transparência e a equidade na concessão dos incentivos”, lembra.

O TCU ainda pode recomendar sanções administrativas aos gestores responsáveis pela fiscalização da “Lei do Bem” caso não sejam adotadas medidas corretivas e o governo pode ser cobrado a adotar mudanças regulatórias para evitar novos prejuízos e melhorar o acompanhamento dos benefícios.

As falhas na “Lei do Bem” podem gerar mais desconfiança sobre outras políticas de incentivos fiscais, afetando a relação do governo com o setor empresarial e a opinião pública”, completa o analista.

Fonte: Gazeta do Povo

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