Comportamento & Equilíbrio

Espacialidade e Temporalidade — Parte III

A aquisição da Espacialidade e da Temporalidade segue a Natureza. Todo o desenvolvimento infantil em seus vários setores segue a lógica do raciocínio concreto, se operando por experimentações

O Espaço, o objetivo, o tangível. O Tempo, o subjetivo, o intangível. Para nossa vida cotidiana precisamos dessas duas Noções muito bem adquiridas e consolidadas em experimentações repetidas. Muitas vezes, nem nos damos conta que estamos usando a Espacialidade e a Temporalidade, tamanha é a presença delas em todos os momentos vividos. O fora e o dentro andam juntos, lado a lado ou misturados, eles se complementam para a composição de nós mesmos.
Se o relógio de carrilhão da minha infância se tornou peça de antiquário ou de museu, assim como o relógio de pulso ou de parede que marca com ponteiros, em configuração que a aprendizagem da interpretação das horas se faz necessária, as crianças atuais não são apresentadas a esse conhecimento. Não são mais alfabetizadas na leitura das horas, no instrumento que concretiza o Tempo. Concretização tão necessária para seu desenvolvimento cognitivo, que só se faz pelo raciocínio concreto durante a infância. O Tempo para elas agora é digital, e contado em “fases” de joguinhos eletrônicos. Essa modalidade não substitui o percurso da aquisição por experimentação do conceito de Tempo.

Ter maior rapidez diante de estímulos criados nos joguinhos através do mesmo movimento de apenas um dedo num controle eletrônico, não se faz a estimulação suficiente para o desenvolvimento das possibilidades variadas dos tempos que precisa aprender. Ou seja, um movimento, simplesmente, reativo que não é pensado, nem avaliado em alternativas, porque elas não existem, a regra é zero ou um somente, não provoca a maturação dos sistemas implicados nessa Noção, em especial, na Noção de Tempo. O único mecanismo treinado, não aprendido, é a velocidade automatizada da resposta ao mesmo estímulo, repetitivo e vazio de sentido para sua aquisição de conhecimento.

Zygmunt Bauman, sociólogo e filósofo polonês da atualidade, escreveu, entre outras obras, o livro A Modernidade Líquida. O pensador nos chama a atenção para a fluidez e volatilidade das relações humanas de nosso tempo digital, em contexto de aniquilamento das leis de Espaço e de Tempo. Essa é a mágica, a do dedinho, que carrega prejuízos de desenvolvimento incalculáveis para a criança.

(Foto: Freepik)

As pessoas hoje pensam que mensuram a inteligência de uma criança pelo arrastar do seu dedinho numa tela de celular ou de similares. Lembro que os chipanzés também descobrem que a tela muda ao arrastar o dedo nela, e ficam curiosos em repetir o gesto mecânico, combinado com uma presteza também automatizada. Enquanto uma criança, ou até mesmo um bebê, que já se mantém sentado mexe na telinha só arrastado o dedinho, ele está deixando de experimentar o caminho árduo da motricidade fina, aquela que vai garantir mais tarde segurar um objeto com três dedos, um lápis, por exemplo, que começa a preparar a aquisição da língua escrita e, depois, percorrer a longa caminhada que pode levar à agulha da sutura, ou ao bisturi da cirurgia, ou ao pincel que produz Arte.

Parece-me, no entanto, que este não é o pior dos prejuízos. A motricidade fina fica em atraso, mas pode ser recuperada, mesmo que com as repercussões psicológicas e escolares causadas. É a aniquilação do Espaço e do Tempo por um instantâneo clique que mais prejudica. Como apreender uma distância, ou um intervalo, como entender a velocidade de um veículo em um dado espaço geográfico quando se é introduzido primeiro numa mágica de instantaneidade pela aniquilação dos dois conceitos da realidade, o de Espaço e o de Tempo. As crianças têm aprendido o errado virtual e depois são obrigadas a aguentar a realidade. Não à toa, temos uma proliferação de quadros de transtorno de comportamento. A hiperatividade nunca esteve tão à mostra, ocasionando dificuldades de aprendizagem.

Os humanos são Epistemofílicos por excelência. A curiosidade, inicialmente movida pela necessidade de sobrevivência, transborda e promove este caminhar, cada vez mais complexo, para o conhecimento do seu entorno, sempre seguindo regras que lhe confiem conclusões, mesmo que, por vezes, ainda parcialmente equivocadas.

(Foto: Freepik)

A importância da aquisição da Espacialidade e da Temporalidade, e a perfeição do sincronismo dos processos de maturação, têm sido negligenciadas não só pelo desconhecimento dos leigos, assim como por profissionais que insistem em negar a realidade dos processos de desenvolvimento infantil. Ora, pintam a criança como um fantoche bobo na mão de uma adulta maliciosa, louca; ora, atribuem “capacidades” magicamente adquiridas, como se gênios mirabolantes fossem todas as crianças que fazem uma denúncia, atribuindo-lhes a psicopatia da mentira ardilosa, antes que tenham capacidade para mentir.

Portanto, impossível. Como se uma criança dissesse que quer dar um carro de presente para a mãe porque as ações da bolsa de valores que ela comprou, renderam muito bem. Quando só poderia dizer que tem muitas moedas com douradinho no seu cofrinho e dá para comprar o carro para a mãe.
A aquisição da Espacialidade e da Temporalidade segue a Natureza. Todo o desenvolvimento infantil em seus vários setores segue a lógica do raciocínio concreto, se operando por experimentações. É só estudar e ter honestidade profissional.
Vamos abordar esse tema na próxima semana.

Ana Maria Iencarelli

Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos.

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