Comportamento & Equilíbrio

Brigar com família gera culpa, mas às vezes cortar laços é necessário

“Na infância, recebi um apelido maldoso de um primo bem mais velho. Os anos passaram, mas ele continuou uma pessoa extremamente desagradável. Adoro a minha tia, mãe dele, mas não sou obrigado a forjar uma amizade que não me agrada. Romper esse laço foi uma medida necessária”, diz o administrador de empresas Paulo Jorge, de 23 anos. “Hoje, apenas nos cumprimentamos com educação quando nos encontramos, o que, felizmente, é raro”.
As divergências são inevitáveis, fazem parte do curso natural da vida, mas esse sentimento de ter pouco ou nada a ver com a família, além de gerar brigas, desavenças e estranhamentos, pode provocar uma sensação de culpa — afinal, como rechaçar as piadas grosseiras do pai ou as críticas passivo-agressivas da mãe quando o que se prega é ‘devemos amar a família acima de tudo’ (e aceitá-la do jeito que ela é).
A família, biológica ou não, é a primeira referência de relacionamento para qualquer ser humano, por isso quando a convivência não é tranquila há um mix de emoções e sentimentos em jogo. Em casos muito extremos, em que há divergência de opiniões a respeito de religião e política, por exemplo, ou em que os parentes não aceitem a orientação sexual da pessoa — e ainda a tratem com desrespeito e preconceito — é preciso refletir bem sobre a convivência.
“Quando as interações não acontecem, torna-se complicado conviver e esse é um momento delicado. Mas cabe a cada família encontrar maneiras de lidar com elas positivamente, algo que pode ser alcançado em meio a tentativas, erros, acertos, e, claro, com a colaboração de todos os envolvidos”, diz Elaine Di Sarno, psicóloga especializada em avaliação psicológica e neuropsicológica e em terapia cognitivo-comportamental, ambas pelo Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-HCFMUSP).
No entanto, relacionamentos familiares tóxicos costumam causar sentimentos de isolamento ou solidão, baixa autoestima, culpa, vergonha, ansiedade e depressão. Em vez de se sentir pertencente a um grupo, a pessoa acumula mágoa e ressentimento. “Obviamente, não somos capazes de admirar pessoas que nos geram desconforto. Dessa forma, tenderemos a buscar a convivência mais próxima com àqueles com quem temos mais afinidade, ou seja, que têm gostos e condutas semelhantes aos nossos”, diz a psicóloga.
Na opinião de Marcelo Lábaki Agostinho, psicólogo clínico do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), as diferenças e as animosidades com a família de origem costumam ficar evidentes depois que algumas pessoas constituem a própria família e têm filhos. “Ao criar o seu próprio grupo familiar, que na verdade é criado a partir de dois grupos familiares de origem distintas, há um distanciamento natural que leva a enxergar certas dificuldades até então não percebidas”.
Além disso, segundo ele, o par costuma trazer outros modelos de família e outras visões sobre como seus membros podem se relacionar. Com a chegada dos filhos, é natural que os novos pais pensem em como foram educados e em como foi a convivência no grupo familiar de origem, e comecem a refletir sobre como fazer diferente, para não repetir erros ou situações que não gostavam quando crianças e adolescentes.
Alguns conflitos são inevitáveis, mas muitos podem ser solucionados com um bom diálogo e respeito mútuo. Não é fácil desenvolver a habilidade de comunicação, mas trabalhar para isso produz recompensas imediatas e a longo prazo. Não há maneira certa ou errada de lidar com membros da família tóxicos. Algumas pessoas optam por interromper completamente o contato, enquanto outras tentam trabalhar com a situação limitando o contato e tomando medidas para proteger seu bem-estar e saúde mental.
Segundo Agostinho, quanto mais alguém tiver consciência de como a família funciona e de que, na convivência, será cobrado por algumas coisas que fez ou que deixou de fazer, mais preparado estará para lidar com isso. “Não acho que exista um padrão para estabelecer os moldes dessa convivência, mas, se a pessoa tem consciência de como é a própria família, poderá dosar o quanto aguenta e o quanto precisa de distanciamento entre um encontro e outro para se ‘desintoxicar da toxidade'”, explica.
É importante frisar que romper laços, por mais libertador que seja, é sempre doloroso e muitas vezes a última opção quando a convivência é hostil ou difícil. Porém, pode ser o preço necessário para se libertar de uma relação que seja desconfortável, desgastante e que causa um sofrimento emocional significativo.
Cortar o contato também não precisa ser uma decisão permanente, mas pode durar o tempo necessário para que haja um fortalecimento emocional e uma maior resiliência para lidar com possíveis enfrentamentos. Foi o que fez o dentista Vítor Resende, 31, que passou dois Natais sem participar das festas familiares depois que uma tia o criticou abertamente sobre sua escolha de crença religiosa. “Durante esses dois anos, admito que senti falta das comemorações que, com exceção da presença dessa tia mais implicante, em geral, são bem divertidas. Decidi voltar a participar e mudar minha atitude, levando qualquer comentário na esportiva ou simplesmente fingindo que não escutei”, conta.

Fonte: UOL

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