Comportamento & Equilíbrio

Torturar uma Criança, a vulnerabilidade e a tolerância — Parte II

A variabilidade de formas de tortura de Crianças é imensa

São muitos e variados os documentos, leis, planos, projetos, no papel. Hoje, nos computadores e páginas virtuais, temos uma infinidade de “regras” e “leis” que, dizem, garantir a Proteção Integral à Criança, como reza o ECA. Mas, falta a Cultura do Respeito a Vulneráveis, entre eles, as Crianças.
No entanto, continuamos a nos deparar com o horror da barbárie contra Crianças. Há quase 12 anos, morria Joanna Marcenal, a primeira vítima letal da alegação de alienação parental, vítima de práticas de torturas continuadas. Até hoje, ninguém foi julgado pelos crimes cometidos contra a menina de cinco anos. Há alguns meses, morreu o Henry, vítima de tortura continuada intrafamiliar, também. Há processos criminais do caso em andamento. O caso das Crianças torturadas na creche, divulgado em grandes mídias, está em investigação. Tudo indica que foi praticado por mulheres. Mulheres/mães ou mulheres substitutas das mães das Crianças. Portanto, em função materna.
Quando batalhávamos pela lei de proibição da palmada, éramos da Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (Abrapia), encaminhamos o PL 5265/1995, se minha memória não está falhando, peço desculpas desde já, mas não prosperou. Veio outro PL, alguns anos depois, ampliado, para além da palmada, que se tornou a Lei da proibição aos castigos físicos, fazendo a iniciação da diferença entre educar e exercer poder com dor e medo, a iniciação de que a dor física não educa. Nessa época, foi publicado no jornal O Globo, na coluna do Zuenir Ventura, um artigo meu, “quem ama, cuida”, sobre esse tema da palmada camuflada de disciplina, mas que abriga o obscuro, diversificado e ilimitado prazer do Poder sobre um pequeno.

Bebê torturado pelo pai, em Parintins, no Amazonas (Foto: Reprodução Internet)

Torturas como as sofridas pelo Henry e pela Joanna, apesar de serem constatáveis, ainda assim, são defendidas em longos processos, e poucas vezes os autores são punidos, mesmo que a materialidade de hematomas, hemorragias, contusões variadas, sejam afirmadas pelos médicos legistas. No caso das Crianças da creche, as autoras tinham a crueldade refinada de amarrá-las com panos, executando uma “contenção mecânica” numa etapa em que a criança ainda não separa a parte do corpo que vai usar para expressar dor ou alegria. Os bebês sorriem com o corpo inteiro, e choram com o corpo inteiro. É só observar suas manifestações emocionais. A coordenação motora ainda é muito precária, o corpo é como um bloco. Mesmo sem marcas visíveis, a tecnologia, junto com o mal-estar de alguma funcionária, trouxe para fora daquele banheiro, a câmara de tortura de bebês, essa barbárie sem rastro. Inútil perguntar para os bebês porque, como expliquei no último artigo, a Criança tem uma mistura de vulnerabilidade extrema e tolerância com o adulto, o que torna, inclusive, possível a inexistência de resistência, rechaço ou repúdio pela creche, por parte dos pequenos. Não há nenhuma referência a um choro maior, que chamasse a atenção dos pais na entrada da creche.
É do conhecimento de especialistas — que estudam esse comportamento de adultos cruéis com bebês — que eles ainda oferecem a incapacidade de se expressar por palavras, o que acaba sendo mais um abrigo para os cruéis torturadores, que há muitos deles entre os profissionais que prestam serviço de maternagem para suprir a necessidade das mães, quando chega o momento de retornar ao trabalho. Muitas vezes, já vimos vídeos de câmeras instaladas pela casa, após uma suspeita tirada de um comportamento de rejeição da Criança pela babá, por exemplo. Mas, como no caso da creche, as Crianças, e, principalmente, os bebês são presas fáceis de sedução e nem sempre conseguem construir uma indicação de maus-tratos.

Ainda no período da Abrapia, constatamos que, pelos estudos da época, em nome da disciplina, a mãe batia mais vezes, e o pai batia mais forte. De fácil compreensão, porquanto nessa época ainda havia o modelo de ser tarefa da mulher, criar os filhos. Todas as tarefas referentes aos cuidados, alimentação, higiene, sono, pediatra, etc., cabiam à mãe, que já começava a se inserir no mercado de trabalho profissional. Portanto, às mulheres a dedicação total. Mas, a violência da força física masculina fazia mais estragos. Em 1986, numa das enfermarias da Pediatria, o Dr. Lauro Monteiro Filho observou um bebê de três meses de idade, pendurado em tração por causa de uma fratura do fêmur esquerdo. E, três meses depois, estava lá o mesmo bebê pendurado em tração por fratura do fêmur direito. Na entrada do Hospital, nas duas vezes, a mãe atribuía à queda do berço. Um bebê de três meses não consegue ainda se virar, mudar de posição no berço que é sempre munido de grades. O “caiu do berço” é tão alegado nas fraturas de bebês quanto o “caí da escada” de mulheres que chegam com o olho roxo. Na Cartilha que produzimos nessa época, pela Abrapia, as informações sobre as formas e os locais que mais machucavam as Crianças, os estudos, as pesquisas e suas fontes.

Bebê de apenas nove meses foi hospitalizado após sofrer tortura pela própria mãe, no Rio de Janeiro (Foto: bebemamae.com)

A variabilidade de formas de tortura de Crianças é imensa. Há “lençóis” invisíveis, que deformam e mutilam a mente dos pequenos. Deparamo-nos com uma forma de tortura de bebês, muito característica nas mães muito estressadas, irritadas, com problemas severos de ansiedade, que estavam em esgotamento, sem possuírem um respaldo familiar que lhes desse um suporte. A Síndrome do Bebê Sacudido se manifesta nos momentos em que o bebê não para de chorar, a mãe já tentou tudo que já funcionou antes, e ele continua chorando, a mãe então, em desespero, pega o bebê por baixo de seus bracinhos e reclama com ele, manda parar, e sacode o bebê. Os movimentos desse sacudir que ela provoca, chicoteiam a cabecinha dele, e a ineficiência do sustentar da cabeça, a imaturidade da coluna cervical, acabam por produzir múltiplas micro-hemorragias, o que promove um estado de leve sonolência que interrompe seu choro. Molinho, ele dorme por algumas horas.
Um bebê, e mesmo uma criança pequena é muito vulnerável. E não possuem a capacidade de se expressar com palavras. Um “convite” para adultos falarem por eles. Muitas vezes de maneira muito equivocada. Se uma Criança chora, desagradada de alguma situação, aparece sempre alguém para dizer que “vai chorar no começo, mas depois acostuma”. Quantas vezes essa frase esconde uma tortura que a Criança acaba por se adaptar. Para ela, é uma questão de sobrevivência, então ela se acostuma. Mas, isso tem um preço muito alto em seu desenvolvimento.

Continuo devendo a afirmação desprovida de qualquer fundamento teórico de que, em caso de separação dos pais, o bebê pode pernoitar com o pai a partir de seis meses de idade. Esta afirmação já circulando em meios jurídicos, fere, frontalmente, o Princípio do Melhor Interesse da Criança porquanto não tem nenhum respaldo científico, por ser contrário à garantia de Saúde Mental do bebê. Esse é um nascedouro de tortura de bebês. Na próxima semana, abordaremos essa perversidade.

Crianças precisam de cuidado e carinho (Foto: Pixabay)
Ana Maria Iencarelli

Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos.

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