Quando começamos a pensar sobre a morte? — Parte II
As crianças perdem colegas da escola, vizinhos de casas ao lado, primos dentro de casa, e até dentro do quarto, e amigos da escolinha de futebol, que são achados pelas balas perdidas dos fuzis
É um cemitério! E logo completou: cemitério de crianças porque tem balões. Era um menino de oito ou nove anos, curioso, foi ali na areia e chegou perto das cruzes, leu alguns nomes e correu até a mãe que ficou mais de longe. Noticiando para ela o que apurou, foi embora. Impressionante como entendeu, tão rapidamente, nossa manifestação.
Buscávamos denunciar os infanticídios motivados pela violência doméstica, e os consequentes feminicídios. O garoto se concentrou na morte das crianças e não reparou que havia mulheres também entre as cruzes. Talvez, porque, para a criança, adultos “podem” morrer.
Estávamos sujando a paisagem. Estávamos melando o clima quase carnavalesco que reinava no calçadão de Copacabana, em frente ao Hotel mais tradicional, bonito e famoso. Mas aquelas crianças, violadas em seus corpinhos, tinham sido assassinadas, com requintes de crueldade, pelos seus genitores. Já haviam sujado a sociedade. Não fomos nós. Mas as criptomnésias do Estado e de seus agentes tratam de ocultar, de fraudar a realidade.
Quanta turbulência! Quanta animação! A cidade pulsando como em dias das grandes festas comunitárias! O G-20, composto por 20 países de economias pujantes, e que se tornou 21, informalmente, com o aceite de mais um país da África, se propôs a discutir questões muito importantes. Os Chefes de Estado pautaram a fome, as mudanças climáticas, a economia, a preservação do ambiente, etc., temas que dizem respeito à sobrevivência da humanidade.
No “Comuniquê”, entregue ao Presidente da República, um único item sobre a necessidade de Proteção da criança. Parece-me muito pouco. Se ainda somos uma sociedade que mata mulheres — uma a cada seis horas — e crianças, não sabemos quantas por dia, um único quesito é muito pouco.
Na última semana, tentamos expor como funciona nosso aparelho cognitivo, a aquisição da noção de irreversibilidade para que possamos começar a pensar sobre a única certeza que temos, a morte. Não queremos nunca pensar nela, como se fôssemos acometidos da fantasia de que se pensarmos, e pior, se falarmos, ela virá.
Para a criança o pensar a morte vem sempre envolto em tentativas de garantias. A irreversibilidade é dolorosa. Até então, tudo podia ser “desfeito”, voltar ao estado anterior. Não poder consertar, encarar o fim de alguma coisa muito querida é muito difícil para a criança. Por isso, ela vai fazendo arranjos na tentativa de não se submeter ao finito. Entre essas tentativas, a criança se consola pensando que a mãe, o pai, que são as figuras mais importantes para ela, só vão morrer quando estiverem bem velhinhos, só com 100 anos!
Nessas tentativas de amenizar a dor da finitude, não cabe a morte de criança, uma pessoa como ela, porque isso traz para ela a finitude tão temida. Para a criança, criança não morre. Não há espaço mental para pensar isso. Aquele menino entendeu que eram crianças mortas. Talvez não tenha alcançado que tinham sido assassinadas pelos seus pais, é muito demais. Mas capturou a mensagem. As cruzes juntas formavam um cemitério. É para onde vão os mortos, já aprendeu. E os balões presos às cruzes, balões são imagens de aniversário das crianças, então os mortos eram crianças.
Nossas crianças têm sido obrigadas a conviver com as mortes de outras crianças em volume insuportável para elas. As crianças perdem colegas da escola, vizinhos de casas ao lado, primos dentro de casa, e até dentro do quarto, e amigos da escolinha de futebol, que são achados pelas balas perdidas dos fuzis. A morte brutal com ferimento sangrento vem sendo banalizada a cada dia.
Para a criança, pensar a morte precisa ser distante para que seja saudável e ajude no crescimento cognitivo, no processo de aceitação da finitude, da irreversibilidade. Ou seja, é necessário que essa aquisição se faça com uma morte que envolva pouco afeto. De preferência. E que seja alguém que já viveu muitos anos, muita coisa.
Quando a mente da criança é invadida por uma morte de muito afeto, de muita proximidade, ela não está, minimamente, preparada para a perda. Frequentemente, isso se constitui como traumático, um excesso de emoção que não tem lugar psíquico para se alojar. E, assim, passa a ser uma “martelada” que vai provocar comportamentos de fuga, de negação, embebidos em muito medo, nem sempre aparente. O medo da morte é a ponta da angústia da impotência que nos acompanha pela vida toda. Contra ela, nada podemos, nada sabemos.