Comportamento & Equilíbrio

Quando começamos a pensar sobre a morte? — Parte II

As crianças perdem colegas da escola, vizinhos de casas ao lado, primos dentro de casa, e até dentro do quarto, e amigos da escolinha de futebol, que são achados pelas balas perdidas dos fuzis

É um cemitério! E logo completou: cemitério de crianças porque tem balões. Era um menino de oito ou nove anos, curioso, foi ali na areia e chegou perto das cruzes, leu alguns nomes e correu até a mãe que ficou mais de longe. Noticiando para ela o que apurou, foi embora. Impressionante como entendeu, tão rapidamente, nossa manifestação.
Buscávamos denunciar os infanticídios motivados pela violência doméstica, e os consequentes feminicídios. O garoto se concentrou na morte das crianças e não reparou que havia mulheres também entre as cruzes. Talvez, porque, para a criança, adultos “podem” morrer.

Estávamos sujando a paisagem. Estávamos melando o clima quase carnavalesco que reinava no calçadão de Copacabana, em frente ao Hotel mais tradicional, bonito e famoso. Mas aquelas crianças, violadas em seus corpinhos, tinham sido assassinadas, com requintes de crueldade, pelos seus genitores. Já haviam sujado a sociedade. Não fomos nós. Mas as criptomnésias do Estado e de seus agentes tratam de ocultar, de fraudar a realidade.

Em 2024, apenas no primeiro semestre, já foram notificadas mais de duas mil mortes violentas de mulheres com indícios de feminicídio, de acordo com o Monitor de Feminicídios no Brasil (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Quanta turbulência! Quanta animação! A cidade pulsando como em dias das grandes festas comunitárias! O G-20, composto por 20 países de economias pujantes, e que se tornou 21, informalmente, com o aceite de mais um país da África, se propôs a discutir questões muito importantes. Os Chefes de Estado pautaram a fome, as mudanças climáticas, a economia, a preservação do ambiente, etc., temas que dizem respeito à sobrevivência da humanidade.

No “Comuniquê”, entregue ao Presidente da República, um único item sobre a necessidade de Proteção da criança. Parece-me muito pouco. Se ainda somos uma sociedade que mata mulheres — uma a cada seis horas — e crianças, não sabemos quantas por dia, um único quesito é muito pouco.

Na última semana, tentamos expor como funciona nosso aparelho cognitivo, a aquisição da noção de irreversibilidade para que possamos começar a pensar sobre a única certeza que temos, a morte. Não queremos nunca pensar nela, como se fôssemos acometidos da fantasia de que se pensarmos, e pior, se falarmos, ela virá.

De 2015 até 2023, foram vítimas de feminicídio no Brasil 10,6 mil mulheres, segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. No ano passado, foram mortas 1,4 mil mulheres, de acordo com a pesquisa

Para a criança o pensar a morte vem sempre envolto em tentativas de garantias. A irreversibilidade é dolorosa. Até então, tudo podia ser “desfeito”, voltar ao estado anterior. Não poder consertar, encarar o fim de alguma coisa muito querida é muito difícil para a criança. Por isso, ela vai fazendo arranjos na tentativa de não se submeter ao finito. Entre essas tentativas, a criança se consola pensando que a mãe, o pai, que são as figuras mais importantes para ela, só vão morrer quando estiverem bem velhinhos, só com 100 anos!

Nessas tentativas de amenizar a dor da finitude, não cabe a morte de criança, uma pessoa como ela, porque isso traz para ela a finitude tão temida. Para a criança, criança não morre. Não há espaço mental para pensar isso. Aquele menino entendeu que eram crianças mortas. Talvez não tenha alcançado que tinham sido assassinadas pelos seus pais, é muito demais. Mas capturou a mensagem. As cruzes juntas formavam um cemitério. É para onde vão os mortos, já aprendeu. E os balões presos às cruzes, balões são imagens de aniversário das crianças, então os mortos eram crianças.

Infanticídio (Foto: Gazeta do Povo)

Nossas crianças têm sido obrigadas a conviver com as mortes de outras crianças em volume insuportável para elas. As crianças perdem colegas da escola, vizinhos de casas ao lado, primos dentro de casa, e até dentro do quarto, e amigos da escolinha de futebol, que são achados pelas balas perdidas dos fuzis. A morte brutal com ferimento sangrento vem sendo banalizada a cada dia.
Para a criança, pensar a morte precisa ser distante para que seja saudável e ajude no crescimento cognitivo, no processo de aceitação da finitude, da irreversibilidade. Ou seja, é necessário que essa aquisição se faça com uma morte que envolva pouco afeto. De preferência. E que seja alguém que já viveu muitos anos, muita coisa.

Quando a mente da criança é invadida por uma morte de muito afeto, de muita proximidade, ela não está, minimamente, preparada para a perda. Frequentemente, isso se constitui como traumático, um excesso de emoção que não tem lugar psíquico para se alojar. E, assim, passa a ser uma “martelada” que vai provocar comportamentos de fuga, de negação, embebidos em muito medo, nem sempre aparente. O medo da morte é a ponta da angústia da impotência que nos acompanha pela vida toda. Contra ela, nada podemos, nada sabemos.

Ana Maria Iencarelli

Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos.

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