Comportamento & Equilíbrio

Injustiça e Ecolalia: Jeferson, mais Lúcia, mais Regina… Para não dizer que não falei de flores — Parte I

Mães que perderam a guarda dos filhos após acusarem os pais de abuso sexual dizem que, tecnicamente, é muito difícil comprovar o abuso sexual infantil, um crime quase sempre cometido em casa

Foi amplamente divulgado pela Mídia o caso do Jeferson. Há alguns dias, Jeferson era esperado pela família, que fez bastante ruído — alcançando os veículos de comunicação — em frente a um presídio no Rio de Janeiro. Finalmente. Foram 26 dias, salvo engano. Ele havia sido “reconhecido” em uma delegacia por uma vítima de um roubo de celular e R$ 5,00. A vítima fez uma identificação promovida pela polícia, por uma foto tamanho 3×4, tirada quando ele tinha 14 anos. Hoje, ele está com 29 anos e não tem a menor ideia sobre a foto constar de um “álbum de reconhecimento” numa delegacia. Nunca teve nenhuma passagem. Além disso, no horário do tal roubo, estava no trabalho. Com comprovação. Mesmo assim foi preso. No entanto, não saiu naquele momento porque o alvará de soltura tinha sido emitido com um erro de numeração. Mais uma noite se passou.
No entanto, Jeferson foi preciso quando, finalmente, estava em frente ao portão de ferro. Respondeu ao repórter: “Não, não estou livre, tenho que vir aqui neste inferno, a cada 15 dias, assinar uma presença”. Como? Então ele continua suspeito? é culpado? E a foto 3×4, quando será retirada do álbum?
Lúcia denunciou — há oito anos — o pai de seu filho por abuso sexual. Constatado, provas materiais, garantia da delegada que escutou a criança. Perdeu a guarda por acusação de alienação parental. Há seis anos não vê o filho que foi entregue a seu abusador. Além do filho, perdeu tudo, profissão, casa, recursos que tinha, a Voz, tudo. Respondendo a uma sequência de processos judiciais, vem aceitando acordos bizarros. Em meio a tantos, foi condenada por denunciação caluniosa. Como ré primária teve o “benefício” de não ser detida, mas perdeu o Direito de se expressar em redes sociais, perdeu o Direito de ir e vir. Lúcia não pode nem mesmo curtir uma publicação de outra pessoa que venha a ser interpretada como relativa ao tema de seus processos. Pode falar de flores. Somente. Lúcia não pode se afastar da cidade em que mora, e tem que ir a um “departamento penitenciário” para assinar uma presença a cada 15 dias. Qualquer falta ou indício que saiu da cidade, perde, imediatamente, esse “benefício” penal.

Foto de Jeferson, aos 14 anos, usada para fazer o reconhecimento dele e, hoje, com 29 anos (Foto: Reprodução/TV Globo)

Regina, uma avó, acaba de ser condenada por “indução” ao sequestro de seu neto pela sua filha, mãe do menino. Ocorre que este garoto era vítima de abusos severos praticados pelo pai, que tem o indiciamento pelo Ministério Público escrito, mas não cumprido, quando este pai ganhou uma busca e prisão da criança, sob alegação de alienação parental. A mãe, para proteger a criança, viajou para casa de parentes. Foi o suficiente para ser aberto um processo de sequestro do filho. Aliás, esta é uma estratégia da escolha de termos indutores de caracterização inadequada de comportamentos que levam ao estigma. Nenhuma mãe acusada como sequestradora pediu resgate pela devolução da criança. O crime de sequestro prevê a subtração de alguém para obtenção de vantagem financeira. Mas, mães protetoras são tipificadas de sequestradoras de seus próprios filhos.
Regina que foi condenada, como ré primária aos 60 anos, está sendo obrigada a prestar serviços comunitários como corretivo pelo crime que cometeu, segundo a justiça. Ela também terá que se apresentar, regularmente e mostrar o trabalho comunitário executado.
O que se observa nesses três casos, que não são exceção porque são inúmeros é que, verdade e mentira perderam a diferença. Jeferson, Lúcia, Regina, têm em comum a perversidade. Não há muita preocupação com a verdade. Não há Direito à Voz. Fica tudo parecido, ou igual. Justiça e injustiça, também. Honestidade e desonestidade, idem. A relativização invadiu o espaço psíquico. As formas silenciosas de violência se alastraram e derivaram formas silenciosas de corrupção intelectual.

Lúcia segura um brinquedo do filho, afastado dela pela Justiça (Foto: Marcos Alves/Agência O Globo)

Princípios e valores são artigos raríssimos. Não há nenhum constrangimento em usar conceitos consagrados pela Ciência dando um jeitinho para inverter o vetor do seu sentido. Ou seja, houve uma espécie de invasão de Ecolalia, sintoma do espectro de alguns quadros de doença mental, e repetir o argumento científico como se um eco fosse, na desfaçatez, é corrente. A lista de comportamentos que podem surgir em consequência de abusos sexuais intrafamiliares é copiada e atribuída à alienação parental. É espantoso como não há constrangimento intelectual, por exemplo, em dizer que a alienação parental provoca autoflagelação e suicídio em crianças e adolescentes, sem se importar com a impossível sustentação da ausência de violação do corpo, condição sine qua non para que haja um atentado contra o corpo. Somente na ocorrência da violação do corpo, vivido como testemunha suja da culpa e da impotência do abuso, e não por um conflito extracorpóreo, a Criança e/ou Adolescente rejeita e atenta contra seu próprio corpo. Ética?

Ana Maria Iencarelli

Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos.

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