Comportamento & Equilíbrio

A Mobilidade Urbana da Criança, antes e hoje

Quando falamos em Mobilidade Urbana de uma criança, pensamos logo nas barreiras arquitetônicas que paralisam sua cadeira de rodas. Escadas, buracos, ausência de calçada, ausência de acesso ao transporte público, etc., etc., etc. A lista seria enorme. Precisamos acrescentar ao momento da obstrução da cadeira, a barreira psicológica da cadeira psíquica para um ser em desenvolvimento, numa fase em que todos os seus pares estão correndo e saltando obstáculos físicos. A adaptação à condição de cadeirante para uma criança é antagônico. Se por um lado a criança tem uma capacidade de adaptação mais livre da preocupação com o olhar do outro, ela sofre mais pela restrição de movimento. A movimentação psicomotora na infância faz parte do seu conjunto de desenvolvimento, e está ligada à cognição e à afetividade.
Entretanto, é no cimento dos degraus que encontramos a concretude da barreira da mobilidade urbana para aqueles que são portadores de restrição motora, parcial ou total. Logo nos lembramos das crianças cadeirantes. No entanto, existem as crianças que andam, mas são portadoras de nanismo. Um degrau de uma escadaria para uma criança anã que já adquiriu a marcha pode ter a altura perto de sua cintura. Nós conseguiríamos subir com facilidade uma escada com degraus na altura de nossa cintura? Não há nenhum espaço que tenha a adaptação à baixa estatura. Os transportes urbanos, as cadeiras em local público, os banheiros, os balcões de informação, ou de polícia, nenhum espaço que também é deles, prevê a presença de um portador de nanismo. À exclusão da vida societária, somam-se os deficientes visuais, hoje com algumas conquistas em alguns corredores de cidadania, e também os surdos-mudos. Com isso, a Mobilidade Urbana é afetada, violando o Direito de ir e vir de muitas crianças. “Você não pode”, “não é para você”.
Entendo que sejam as barreiras invisíveis as mais difíceis de transpor. Hoje vivemos a barreira da violência vigente nos ambientes urbanos. A violência é cotidiana para uma enorme quantidade de crianças. Tiros. Fuzis. A rua, a escola, a própria casa. O Juiz que usando o resultado da ausência de Políticas Públicas de Habitação do Estado, quer tirar a guarda de uma mãe para entregar o menino ao pai violento e ausente, usando a “justificativa” do perigo numa determinada comunidade, como se a violência se restringisse às favelas. Os tiroteios são até avisados pelo celular, como um serviço de utilidade pública para a sobrevivência, para que a mobilidade urbana de todos seja protegida das famosas “balas perdidas”. A adaptação ocorre: crianças aprendem a se jogar no chão nos corredores de suas escolas, ou entrarem embaixo da cama em casa. Mas o MEDO fica. Medo que a mãe morra, medo de morrer. Medo. Tatuado na alma promoverá alterações psicológicas. Estas crianças tatuadas serão, em grande número, portadoras da Síndrome do Pânico, nomenclatura em formato atual da Neurose de Guerra. Assim a Imobilidade Urbana se cristaliza. E deixa o rastilho de deficientes sociais.
A barreira do preconceito, aquela que é transmitida verbalmente, ou por gestos e olhares, e que muitas vezes, não deixa rastro, só a opressão doída à criança que foi impedida de entrar num restaurante por causa de sua cor, por exemplo. O preconceito do pertencimento à outra facção porque pertence à outra comunidade. Recentemente, três jovens foram assassinados pelos “donos” da comunidade onde tinham ido pegar um filhote de cachorro. Como se invasores fossem.

A barreira Cultural que isola crianças como em guetos. A praia. O cinema. A Música. A geografia da cidade (Foto: Renato Spencer)

A barreira Cultural que isola crianças como em guetos. A praia. O cinema. A Música. A geografia da cidade. É aberrante uma criança de 11 anos assustar-se quando visualiza, pela primeira vez, a Lagoa Rodrigo de Freitas ao atravessar apenas um túnel, a menos de 10 minutos de sua moradia. A pobreza e a cor da pele são barreiras que segregam.
Há que se circular, com liberdade, e, claro, acessibilidade, entre todos os espaços de uma cidade para que consigamos cidadania. Para o bom desenvolvimento das crianças, precisamos de quantidade e de qualidade de urbanidade.
Hoje. Quando escrevi, em novembro de 2019, este artigo como vice-presidente da Comissão de Mobilidade Urbana da Associação Nacional e Internacional de Imprensa (ANI), publicado em sua Revista, não imaginava que a Mobilidade Urbana, da criança, e de todos, ia entrar em extensa modificação. Hoje, não só as crianças cadeirantes, as portadoras de nanismo, as portadoras de deficiência visual ou auditiva, as moradoras de comunidade dominada pela facção A ou B, mas todas as crianças estão impedidas de qualquer mobilidade. Esta necessidade de isolamento por uma ameaça de morte que paira como uma nuvem enorme sobre todas as cabeças do mundo, trouxe uma nova e enorme barreira invisível, nunca antes cogitada. E as crianças precisaram aprender a contenção. O não abraço. O não beijo. É a nova barreira invisível do vírus. Cruel.
Precisaremos descobrir como reparar esta falha de convivência que a vida impôs a elas. Os degraus, os buracos nas calçadas, os preconceitos, as divisões arbitrárias de territórios, os medos, os tiros, as outras mortes bem ao lado, continuam. A mais pura e completa impotência daqueles adultos antes idealizados, os pais, foi exposta na não resposta do “quando o vírus vai embora?” Tivemos que aprender e ensinar para os pequenos o “eu não sei”. O reconhecimento do não saber é aprendizado de poucos, e vem com o amadurecimento. É da ordem da sabedoria, não combina com a enganosa onipotência das certezas.
Devemos comemorar a nossa nova, novíssima capacidade de mudança de paradigma que operamos ao efetivarmos um isolamento, nunca antes experimentada, mesmo com falhas aqui e ali, e com o questionamento, que sempre cabe, mas, comprometido com a indicação de ser o único caminho para amenizar o engarrafamento dos hospitais públicos já sucateados. Conhecemos o não saber da data, em tempos que o prazo de validade é obrigatório em todos os produtos. E sempre fomos capazes de, olhando, perceber o estado do papel e saber que não funcionaria mais para o que se destina. Foi-nos apresentado um tempo infinito, que não sabemos quanto vai durar. Aprendemos que o Direito Universal de Ir e Vir, que consta da Declaração Universal dos Direitos Humanos, vem depois do Direito à Vida, também ali garantido.

Ana Maria Iencarelli

Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos.

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