O ECA e a Sociedade Partida — Final
Já se passaram 30 anos do ECA. Estamos bem atrasados.
Verificamos que conceitos relativos ao desenvolvimento da criança são distorcidos de tal maneira que fica muito difícil para a necessária organização da mente em crescimento. Proteção, e o que acontece é a negligência. Liberdade, e o que acontece é a lassidão. Saúde, e o que acontece é o esgoto que passa em vala aberta em frente à casa precária. Educação, e escolas sem carteiras de estudo, sem banheiros. Alimentação, e as falhas da única refeição na escola no lugar do estudo. Esporte, e o jogo de pé no chão e bola rasgada. Lazer, e o gueto que proíbe a mobilidade urbana nas cidades partidas. Profissionalização, e o comércio de drogas que convida desde os 10 anos. Cultura, e o ensino da violência. Dignidade, e o cotidiano humilhante.
Estas distorções deformam a mente em desenvolvimento. Num tempo em que a clareza de atitudes é fundamental, a criança recebe mensagens ambíguas, contraditórias ou antagônicas. As combinações, as regras, as leis flutuam, e mostram uma seletividade. Todos são iguais perante a Lei? Onde? Quando? Ela sente os maus-tratos, sente a negligência, sente a violência, violações que horrorizam, mas logo são esquecidas. O tempo midiático não é processual, é fenomenológico, e já deixou até de ser analógico. Por outro lado, o tempo jurídico com a Cultura Recursal, é infinito. Nada compatível com o tempo e as necessidades da criança.
Estes motivos fazem parte da raiz da relação com a lei. Se não esteve presente, se não foi experimentada na infância, não será adquirida na vida adulta. O processo fica falho, como se continuasse à espera desta aprendizagem. Assim vemos, por exemplo, o comportamento infantil de monitoramento para que ocorra a obediência à lei. É aquele caso emblemático do motorista que fura o sinal, o semáforo vermelho, e só para ao ouvir o apito do agente. Perguntado pelo guarda se não viu que estava vermelho, responde que viu o sinal vermelho, mas não viu o guarda. Não raro isto acontece na presença de um filho ou filha, e não raro também, pergunta se o agente não pode “quebrar um galho”, oferecendo uma nota de R$ 50,00, ao que também é assistido pela criança. Como “consertar” isto? O que está sendo falado para a criança é que só se ela estiver sendo vigiada, ela deve obedecer a regra. Se ninguém estiver vendo, ela pode burlá-la. E é precisamente isto que acontece com as violações contra a criança e o adolescente quando se trata da prática de violência doméstica por exemplo. Também a criança assiste a mãe ser agredida verbal ou fisicamente, mas sem que hajam “guardas”, e obrigando a criança à conivência da violência pela intimidação da força. A voz destas crianças tem sido desqualificada por aqueles que deveriam honrar a sua Proteção Integral, por aqueles que operam a lei.
Aprendemos a denunciar. Mas algumas denúncias são invertidas contra as vítimas. As queixas de uma criança devem ser provadas por ela mesma em toda sua vulnerabilidade. A vítima criança/bebê, tem o ônus da prova. Não se investiga. É abreviado este caminho pela acusação à vítima. É mentira, é fantasia, fala o que mandaram falar, como se a criança fosse um boneco de posto, desconsiderando seu relato pormenorizado e emocionado. Não são apenas palavras, há a linguagem corporal no relato de uma criança vítima. Há emoção. Não vivemos em estúdio cinematográfico de Hollywood. Mas, é como se a criança e a mãe fossem atriz e diretora para executar uma revelação espontânea de uma criança, descrevendo um fato que lhe foi imposto por um adulto intrafamiliar.
Não temos praticado a garantia do Direito à Dignidade. Não é digno que a criança não tenha as melhores condições para seu pleno desenvolvimento. Já se passaram 30 anos. Estamos bem atrasados.