Nova lei, velho patriarcado
Por Ana Liési Thurler e Ana Maria Iencarelli
Viviane do Amaral Arronenzi, presente!
A Juíza Viviane foi morta com extrema violência na véspera do Natal de 2020, pelo ex-marido, diante das três filhas: uma com nove anos e as gêmeas com sete anos. O crime ocorreu no Rio de Janeiro, em via pública, à luz do sol. Viviane foi entregar as meninas para passarem o Natal com o pai. Três meses antes do feminicídio, havia feito um Boletim de Ocorrência, mas manteve a guarda compartilhada das meninas. O pai queria zelar por elas? Seu comportamento feminicida indica o que ele realmente pretendia: manter acesso à Viviane. Se ela não tivesse concordado com a guarda compartilhada com um homem violento, certamente seria mais uma mãe acusada de alienadora. Mas hoje estaria viva.
O Projeto de Lei da Alienação Parental (LAP) foi apresentado na Câmara Federal em 2008. Com rara rapidez na tramitação, foi aprovado em 2010, consagrando o princípio de presunção de culpa da mulher-mãe. Um dos pilares do Direito brasileiro é o princípio de presunção de inocência. Pelo caráter das relações sociais de gênero ainda vigentes, por misoginia, esse princípio não vale para as cidadãs deste País. Violências e abusos denunciados por mulheres-mães são mantidos sob suspeitas, por um Sistema de Justiça androcêntrico, sexuado onde as mulheres são 36% entre juízes e metade disso entre ministros dos Tribunais Superiores. A palavra da mulher não tem credibilidade diante do Estado brasileiro. Frente a nosso Sistema de Justiça, é a mãe quem promove alienação. A LAP é uma lei sexuada, com caráter coercitivo e punitivo sobre as mulheres-mães, supostas histéricas, doentes. Penas vão da redução ou extinção da pensão alimentícia até a reversão da guarda e a restrição total do contato da mãe com a criança. Homens alienadores não existem.
Síndrome da Alienação Parental e implantação de falsas memórias
No texto da lei 12.318/2010, alienação parental é a manipulação psicológica da criança para que venha a temer, desrespeitar ou repudiar o genitor. Essa expressão se assenta na Síndrome da Alienação Parental (SAP), não reconhecida em nenhuma instância de saúde, sem a Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (também conhecida como Classificação Internacional de Doenças — CID 10), ainda que seu criador, desejoso de criminalizar as mães, tenha insistido até a morte, nessa sindromização, nessa patologização. O criador da expressão SAP foi o psiquiatra estadunidense Richard Gardner (1931-2003), lançando-a publicamente em 1985, não tendo reconhecimento nem pela comunidade médica, nem pela comunidade jurídica. Então a LAP — que continuamos pedindo para ser revogada — se assenta em uma Síndrome inexistente, sendo o Brasil o único País no mundo a ter uma lei nesse sentido.
Uma pergunta não pode ser calada: por que, justamente este País, com altos índices de violências contra crianças e mulheres, mantém, solitariamente, a LAP? O quadro grave de grande parte de nossas famílias é revelado por dados produzidos por entidades e programas com reconhecida confiabilidade. Destaco o programa Disque 100, onde são evidenciadas, ano após ano, violações sofridas por crianças, principalmente entre quatro e sete anos, dentro de casa. No ano em que o programa completou 20 anos, em 2017, ao menos 130 mil crianças — a maioria meninas — foram negligenciadas, violentadas psicologicamente, abusadas sexualmente. E o programa Ligue 180 tem oferecido mais de um milhão de atendimento de violências de gênero que mutilam e matam milhares de brasileiras no âmbito doméstico e atingem filhas e filhos, que presenciam e sofrem violências.
Há entidades produzindo informações qualificadas, nesse campo. É o caso do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) que, desde 1998, publica o Mapa da Violência, com apoio da Unesco e da Flacso, e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que oferece à sociedade o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Graças à produção desses dados sabemos, por exemplo, que nas últimas duas décadas do século passado foram assassinadas, neste País, 47,5 mil mulheres e na primeira década do século XXI foram mortas 43,5 mil brasileiras. Enfim, dentro de casa, violências e abusos existem. Não são falsas memórias, maldosamente implantadas pela mãe, na cabeça da criança.
A locução “alienação parental” foi cunhada por Richard Gardner, diretor de psiquiatria infantil, no exército dos EUA, defensor de pais abusadores e violentos. Em seu livro True and Falses Accusations of Child Sex Abuse, a p.24 diz: “As atividades sexuais entre adultos e crianças fazem parte do repertório natural da atividade sexual humana”. A pais acusados de pedofilia intrafamiliar recomendava acusarem a mãe de alienação parental, retirando o foco do pai e da criança, apresentada como programada pela mãe. O relato da criança é desqualificado, considerado resultante da implantação de falsas memórias. Tal programação é impossível, pois a infância transcorre sob a égide de experiências e do raciocínio concreto.
Constelação Familiar e Privação Materna Judicial
A violência institucional prossegue com a adoção do método da Constelação Familiar, que se disseminou pelos espaços de Justiça brasileiros. Tal método desresponsabiliza o agressor/abusador, inocentado porque o constelador descobre, por transmissão de vibrações morfogenéticas, que um tetravô era pedófilo, sempre na linhagem materna. Da mãe, que denunciou o pai, é exigido que peça perdão de joelhos ao ex-cônjuge violador. Com a crença de que antepassados de várias gerações continuam ativos entre nós, é aceito e autorizado nas dependências dos Fóruns brasileiros, esse ritual que desresponsabiliza quem comete crimes. Mais uma violência institucional contra a mulher e a criança. O Estado patriarcal humilha a mãe, encena uma “resolução”, sonega o crime cometido, reduzindo-o a um simples conflito entre o ex-casal.
Se a mãe não se retratar, é sustentado que ela faz uma campanha contra o pai junto à criança. Dogmaticamente, a alegação de alienação parental patrocina a separação da mãe e da criança. Na maioria das vezes, separação traumática, em cenas de desespero com a execução da ordem de busca e apreensão, feita com policiais. É no colo de um deles que a criança sai de sua casa, deixa sua mãe, seus objetos pessoais. Sente que está sendo presa porque quebrou o pacto de silêncio com o pai abusador. A Privação Materna Judicial (expressão cunhada por Ana Maria Iencarelli) — violência institucional contra a mãe e a criança instituída no Brasil, sob as bênçãos do Estado patriarcal — é promovida com a acusação da mãe de prática de atos alienadores, prática que tem se tornado banal em Varas brasileiras de Família.
Joanna Marcenal, presente!
Em 2010, a médica Cristiane Marcenal demandou pensão alimentícia para a menina Joanna, cinco anos. O pai acusou Cristiane de alienação parental e pediu reversão da guarda. O Judiciário atendeu André Marin. Não é detalhe: foi aplicada uma lei que não existia e, em 26/05/2010, a menina foi separada da mãe punida com impedimento de ver a filha durante noventa dias. Cristiane reencontrou Joanna em agosto, já com morte cerebral. A menina Joanna morreu em 13/08/2010. A LAP foi aplicada contra a mãe e a menina, três meses antes da aprovação, em 26/08/2010. Joanna Marcenal, mártir da Lei de Alienação Parental.
Todo esse estado de humilhação que sofrem mães em busca proteger seus filhos e filhas, foi pauta da mesa on-line “Mães pela Revogação da Lei da Alienação Parental” (https://www.youtube.com/watch?v=YAiWqzxBHsI&t=716s), do 8M Unificadas do DF e Entorno, e envolveu mães que são vítimas da LAP, feministas que lutam pela revogação dessa lei e profissionais dos campos jurídico e político, que lidam com este problema em seu cotidiano.
(*) Ana Liési Thurler, filósofa, socióloga