Comportamento & Equilíbrio

Violência contra a Mulher e a Criança. Suas várias formas, cada vez mais naturalizadas — Parte V

Qual a justificativa de se afastar uma mãe, sonegar os cuidados maternos à Criança, que sabemos de suma importância?

Quando pensamos em violência logo surge a ideia desejosa de saber sobre a autoria, e o impulso de atribuir a culpa. E, nesse momento, parece que a violência assume vestimentas de gênero. O fato de 69% dos pais das crianças que nasceram com microcefalia pelo Zika Vírus, terem abandonado essas crianças e suas mães, passa incólume. Os procedimentos de imputação criminal são apenas para o gênero feminino. Talvez seja porque o volume de abandonos paternos, mesmo com a subnotificação, seja impossível para a mínima resolução, haja vista que temos o registro de 57 milhões de mães solo no Brasil, pelo último censo. Assim, fica restrito ao gênero feminino a criminalização pelo abandono de Criança, e fica também restrito às mulheres a responsabilidade do sustento dessas Crianças abandonadas pelos pais.
Talvez também por este motivo, o volume de abandonos paternos, a justiça é tão encantada pela frase falada por alguns pais que pedem a guarda porque “amam muito” aquele filho ou filha. Em meio a tantos homens que deixam para trás seus filhos, aqueles que exigem convivência e guarda unilateral parecem ser tratados com tapete vermelho. Todas as honrarias, todos os direitos, mesmo os que ferem o ECA e a Constituição, na garantia do Direito ao convívio saudável com pai e mãe, família extensa paterna e materna. E aqui cabe a pergunta: qual a justificativa de se afastar uma mãe, sonegar os cuidados maternos à Criança, que sabemos de suma importância? Por que, usando uma alegação de falácia tendenciosa, com cálculo futurista infundado cientificamente, uma previsão sem comprovação de estudos longitudinais, é, imediatamente, estabelecida a tortura da Privação Materna Judicial? Em que argumento, que siga o Princípio Constitucional da Razoabilidade, se pretende judicializar e controlar afetos e emoções da relação mãe-filho/a?
Faz-se necessário observar que a intervenção da justiça promovendo a pretensa “alienação”, praticada pela mãe contra o pai, que foi objeto de condenação à mãe denunciante, torna-se então benéfica quando é a mãe que é, totalmente suspensa pelo Estado do convívio com a criança. Gardner, o inventor desse termo, também afirmou ser benéfica a pedofilia para a Criança. Ambos “benefícios” seguem se mostrando triunfantes e intimidadores.
Vemos nos “acompanhantes” judiciais para a tortura da revitimização de visitação materna a cruel modalidade de contato, tanto para a Criança quanto para a mãe, determinando quanto de abraço e beijo é permitido à mãe. E, se “interpreta” que a mãe desobedeceu a sua ordem de menos proximidade física entre uma mãe e sua filha de cinco anos, o relatório é escrito apontando para o juiz que a mãe continua praticando atos de alienação parental e sugere que as visitas devam ser reduzidas. Não importa se essa menininha foi arrancada pelo pai em ação de busca e apreensão, sempre acompanhado de força policial, onde é possível ver o desespero da criança que tenta se agarrar aos gritos ao corpo da mãe, chegando a fazer xixi na roupa, sofrimento observável nas imagens do registro audiovisual. Assim, também temos registrado o desespero de um menino de 12 anos, diante da visita virtual do seu pai que abusou dele durante toda sua infância, e só de ver a figura do seu abusador, ele não contém o xixi e molha tudo, roupa e cadeira. Perde o controle esfincteriano aos 12 anos. Mas, para o operador de justiça, o direito do pai de convivência é sagrado, acima do mal-estar do menino, que relata há três anos os abusos sofridos, cotidianamente. Medo. Descrédito. Desespero. O laudo da dita “perita”, feito a partir da acareação da criança com o seu abusador, afirma que não houve abuso, que é alienação parental da mãe. E, durante a acareação, a psicóloga fala para o menino quando ele relata os abusos, que esses comportamentos de abusos anais são coisas que acontecem entre homens. Normal.
Como lidar com as ordens judiciais que violam a Criança? E a sequência prossegue. A determinação do afastamento materno parcial ou total, sob ameaças de mais punição de interdição do Direito à Maternidade que aponta para a aniquilação dessa mãe. E, sob o seriado de ameaças de mais perda, que vem dos órgãos do sistema judiciário, e do próprio advogado contratado por ela, essa mãe vai se adaptando até se conformar com a migalha que lhe é permitida, sempre debaixo de condições draconianas. Assim, ela não percebe que está sendo o instrumento refinado e perverso da violência que está sendo perpetrada contra seu filho ou filha. A adaptação de uma mãe para manter um fiapo de contato com a Criança é incalculável.

A adaptação de uma mãe para manter um fiapo de contato com a criança é incalculável (Foto: Reprodução)

A frase repetida à exaustão é: “não vou desistir nunca!”. Aqui também há uma manipulação em que é levada a pensar que, a não aceitação total das perversidades impostas, passa a ser um sinal de desistência, perde o único adjetivo que está agarrada como uma prova de que é uma verdadeira mãe. Repetir que não vai desistir como um mantra, faz parte do autoconvencimento que lhe tira a clareza da racionalidade. Não consegue enxergar que está sendo usada como instrumento de violência contra seu filho ou filha, que ela está, também, praticando a tortura a que ele, ou ela, foi condenado judicialmente, abuso sexual e/ou violência física.
Esta é uma atitude inusitada e, provavelmente, pouco compreendida. Certamente, alvo de mais uma manipulação contra a mãe, classificando-a mais uma vez como louca, como desnaturada, como péssima mãe para corroborar a acusação de alienadora. É um ato de amor materno não aceitar ser objeto que tortura o filho, a filha. É quebrar a armadilha da garantia da desresponsabilização. Aliás, este ato cívico deve ser acompanhado de Registro nos Autos, e em Ata Notarial como sendo o Retirar-se por não concordar em perpetuar a tortura contra a Criança, entregando, devidamente, por escrito, a Responsabilidade da Integridade da Criança ao Estado, posto que está instituindo a Privação Materna Judicial.
Dizer NÃO, claro, é difícil, mas é legítimo e legal. Quando não há racionalidade nem razoabilidade, resta, apenas, a desobediência civil para restabelecer o bom senso. Ninguém pode obrigar uma mãe a torturar seu filho. Isto não recai na areia movediça do Segredo de Justiça, que amordaça. Dizer NÃO a esta prática é diferenciar o desistir do não compactuar ser instrumento da Violência Vicária do Estado.

Ana Maria Iencarelli

Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos.

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