Cultura

Melhor versão

Nos olhos daquela mulher só havia desagrado. Para ela a sua vida era miserável, sua família era desprezível e nada em sua vida a fazia feliz. A cada dia uma nova confusão, com todos ao seu redor, sempre deixava nítida a sua insatisfação. Os seus filhos a temiam e se sentiam apavorados em sua presença. Não havia paz naquela casa e nem conforto na família. O marido se esforçava ao máximo para que nada faltasse, porém, o desgosto o tomava por inteiro. Para ele e para as crianças a convivência familiar era um tormento por conta da insatisfação da mãe e das suas reclamações corriqueiras.
Acordar era um esforço além do normal para ela, realizar as tarefas diárias, um fardo, nenhum dos seus sonhos se realizaram e a sua vida era um infinito pesadelo. O local que habitavam era precário e próximo a um rio que periodicamente inundava, com isso, eles ficavam vulneráveis todos os anos. A mulher planejava uma fuga, ela queria novas aventuras em um lugar bem distante de todos que a cercavam. Em seus planos ela sairia durante a madrugada e a data foi escolhida.

Antes da estação das chuvas, uma frente fria chegou e as águas despertaram o temor da população. Então, o inesperado a impediu de cumprir os seus objetivos. Em uma noite fria de primavera choveu intensamente por horas, as águas do rio subiram e as casas do bairro foram levadas como se fossem de papéis. A casa da mulher foi atingida pela fúria das águas, não houve tempo para fugir.

Entretanto, os seus olhos despertaram novamente para enxergar a verdadeira tragédia. Coberta de lama, e sem ter noção do que havia ocorrido, ela se levantou cheia de feridas pelo corpo, caminhou por um longo tempo em um lamaçal irreconhecível. Em desespero a mulher gritava o nome dos filhos e marido, o seu bairro não existia mais. Naquele fatídico instante ela se deu conta que estava livre, como havia sonhado, todavia, uma dor insuportável a deixou sem fôlego, lágrimas tomaram os seus olhos por compreender a possibilidade da perda.

Diante do próprio desespero, ela começou a cavar com as mãos a lama que estava embaixo dos seus pés. Enquanto cavava a terra, uma angústia a possuiu de tal forma que surgiram em sua mente dois temores: o primeiro era não os encontrar e o segundo era de encontrá-los sem vida. Alguns gritos distantes ecoavam entre a escuridão e a chuva fina. Antes do sol nascer ela foi resgatada por um socorrista que a levou para um abrigo. Em choque ela não conseguiu descansar, cuidaram das suas feridas e somente com uma dose de calmante, ela adormeceu. Ao despertar no dia seguinte, a mulher estava confusa que até questionou a veracidade das suas lembranças, ela voltou a chorar pedindo perdão a Deus. Ali ela descobriu a própria maldade, a culpa a tomou quando conheceu a proporção do seu egoísmo. Apesar dos sentimentos que a torturavam, ainda existia dentro dela uma pequena esperança de encontrar cada um deles para pedir perdão, principalmente, por sua ingratidão.

Horas depois, um bombeiro se aproximou dela com papel e caneta nas mãos e um semblante triste, de longe ela já imaginou o pior. Ele revelou que nas buscas não havia mais nenhuma casa, nem mesmo sobreviventes, apenas ela, concluiu dizendo que os corpos foram encontrados em meio aos destroços e que lamentava profundamente. O único desejo daquela mulher ao ouvir cada palavra, era o desejo pela morte para estar com eles, para tentar se redimir. Diante dos fatos a sua essência se calou, os seus sonhos perderam o sentido e a culpa se tornou uma companhia eterna para, enfim, ela viver os seus sonhos.

O tempo passou, a mulher experimentou novas oportunidades em sua jornada, novos amigos, novos trabalhos, tudo, menos uma nova família. No fim, ela descobriu que a liberdade não era tão saborosa quanto imaginava, porém, jamais murmurou novamente e passou a valorizar cada detalhe da sua vida e também da sua nova e melhor versão como mulher.

Autora: Silvia Vanderss
Conto: Melhor versão – Inédito
Palavras: 669

Silvia Vanderss

Silvia Vanderss

Autora capixaba, com formação em Administração e Letras Seis obras publicadas que abrangem os gêneros, romance, suspense e poesia Blog literário: www.silviavanderss.com.br

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