Comportamento & Equilíbrio

Espacialidade e Temporalidade — Parte IV

É impossível para uma criança que lhe dedicam horas diárias de manuseio de um aparelho celular saber fazer a leitura das horas em um relógio de ponteiros. Assim também, lhe é penoso esperar

Quando trouxemos os conceitos da Espacialidade e da Temporalidade como tema, estávamos tomando emprestado esses processos do desenvolvimento cognitivo na criança para sugerir uma reflexão sobre a perversidade que vem se alastrando nos laudos e pareceres que objetivam a defesa de agressores, que continuam sendo consagrados, socialmente. Muitas são as injustiças cometidas por profissionais que teriam a obrigação de considerar o conhecimento aprendido nos bancos universitários.
São muitos os conceitos psicológicos de desenvolvimento que têm sido aviltados. Para além da precariedade da aprendizagem teórico-técnica e do raciocínio lógico, nos deparamos com essa liquidez das relações interpessoais. Não se conhece mais o compromisso com o outro, menos ainda, a responsabilidade pela consequência de uma inconsequência escrita na indução de uma sentença jurídica. E, a praxe é empurrar a criança vítima nas garras do seu algoz, intitulando a mãe de louca.

Essa praxe promove prejuízos insuperáveis. Não há nenhum controle posterior ao dogmático afastamento determinado para a mãe que ousou denunciar um homem, visto sempre por juízes como “ilibado”. Essa é uma definição atribuída e, com frequência, pronunciada por agentes de justiça.

Mas, à luz do olhar sociológico de Bauman, para onde vão os processos de Espacialidade e de Temporalidade nessa Modernidade Líquida? Não há um avanço de velocidade ou de aproximação de distâncias com seus necessários intervalos de tempo. Há uma quebra irreversível, há o aniquilamento do Espaço e do Tempo. Um clique, sem nenhum esforço, e fomos transportados para o Museu do Louvre.

(Foto: iStock)

É impossível para uma criança que lhe dedicam horas diárias de manuseio de um aparelho celular saber fazer a leitura das horas em um relógio de ponteiros. Assim também, lhe é penoso esperar. A aprendizagem da espera é incompatível com sua hiperatividade, diagnóstico que viralizou. Se apertar uma tecla lhe fornece, em nenhum tempo, uma resposta que já traz o próximo estímulo para que aperte de novo, o mais rápido possível a mesma tecla, não há espaço para a espera.

E quando se faz necessário, torna-se, até mesmo, doloroso, insuportável. Não por acaso, temos uma legião de crianças que não sabem mais usar o espaço de seu corpo no espaço ao redor, com o espaço dos outros corpos de outras crianças, formando uma brincadeira com múltiplas sensações, tendo como resultado conclusões lógicas experimentadas de Espaço e Tempo. O objetivo e o subjetivo precarizados.

Como o Tempo é intangível, e a infância é a fase do raciocínio concreto, do objetivo, da experiência de ver, pegar, a criança tem muito mais dificuldade em apreender essa Noção. Sem experimentar os intervalos, ela não consegue lidar com intervalos de tempo variados ao lado de uma aniquilação completa de Tempo. Como construir um esboço de conceito quando se tem duas impressões subjetivas, absolutamente, antagônicas?

Grupo de crianças desfrutando de atividades ao ar livre e se divertindo no parque (Foto: Freepik)

Por um lado, a inadequação de uma “aprendizagem” equivocada, que leva a criança ao erro e à, consequente, intolerância à espera, ou a qualquer esforço físico para medir o Espaço, (lembrando que o corpo é sempre usado como parâmetro). Por outro, adultos parecem ter um celular nas mãos quando desconsideram as leis do desenvolvimento e condenam crianças à convivência nociva. Sem medir Espaço e Tempo pessoais da criança, tomam o caminho da aniquilação da dignidade inscrita na Lei. Mas, desrespeitada.

Considerando que, durante a infância, as aquisições, todas, são operadas por experimentação, fazendo uso do raciocínio concreto, como “esquecer” dessa lei natural e cobrir de preconceitos uma criança quando ela está relatando uma agressão que sofreu. Ressaltando que aprendemos a andar porque experimentamos, a falar porque experimentamos fazer os sons para dar nome aos pedaços de mundo que nos rodeiam, a gostar e ser gostado porque experimentamos sensações agradáveis e desagradáveis, fazendo delas nosso acervo afetivo, e, a pensar pela experiência, somente pela experiência com todo o rigor da lógica, mesmo que infantil e ainda precária. A curiosidade intrínseca, que parece nascer da necessidade de cuidar da sobrevivência, é o que nos torna seres, absolutamente, epistemofílicos. É o que nos impulsiona. Precisamos saber, saber e, saber, com consistência, com consequência, com correição.

Ana Maria Iencarelli

Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos.

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